Os verbos da salvação – 7. RECORDAR

Joel Fulgêncio | Unsplash

Das nossas recordações de infância aos encontros pascais com o Ressuscitado, a humanidade é percorrida por um fio de horizonte que a une, a alimenta e a sustém: a Memória. Dela cuidar constitui uma sabedoria e um desafio.

Memórias afetivas, sensoriais e outras

10 mil é o número de estrelas que conseguimos ver a olho nu numa noite e local escuro. 100 mil milhões de estrelas é, segundo o site da Agência Espacial Europeia, o número estimado de estrelas só na Via Láctea. Encontramos a mesma quantidade num cérebro de um bebé ao nascer: 100 mil milhões de neurónios.

É fascinante o que se passa na cabeça de um ser humano ao nascer. Pensar na memória não é necessariamente um exercício abstrato ou de vocalizar, nostalgicamente, “ó tempo, volta para trás”.

A biologia, a psicologia, a ciência cognitiva e até, mais recentemente, a ciência dos computadores contribuem para o facto de a definição de memória estar em evolução. Socorro-me da psicologia para definir o que é a memória: faculdade de codificar, armazenar e usar informação.

Inclui três categorias: a sensorial, a de curto prazo e a de longo prazo. Todos estes tipos de memória têm caraterísticas diferentes. Por exemplo, não controlamos conscientemente a memória sensorial, na memória de curto prazo temos informação limitada e na de longo prazo podemos armazenar uma quantidade indefinida de informação. Foi só em 1966, com a descoberta da potenciação a longo-prazo, que começámos a entender a memória como um processo neuro-químico.

Para este artigo, vamos lembrar-nos do património sensorial que levamos connosco e esquecermo-nos das patologias associadas à perda desta faculdade. No último artigo sobre o “Ouvir e escutar” falámos de um património auditivo, de como os bebés ao nascerem trazem consigo uma memória de sons da vida uterina que lhes permite reconhecer a voz da mãe e dos que estiveram mais próximos, de histórias ou músicas. Mas trazem mais do que isso consigo. Trazem já consigo um património gustativo.

A sopa de grão-de-bico da avó é que era boa!

Ali pela 30ª semana de gestação, sete meses e meio, ocorre a ativação das papilas gustativas, o bebé começa a saborear o que lhe chega. A dieta da mãe influencia a composição do líquido amniótico e os dados apontam que este será o primeiro passo no desenvolvimento da memória sensorial gustativa. O segundo será o leite materno, que muda de composição conforme a dieta da mãe. Claro que do ponto de vista evolucionário, por uma questão de sobrevivência – como vimos no primeiro “Verbo da Salvação”, o Comer – temos uma preferência inata pelo doce.

Não será por acaso que o património gustativo é também afetivo. Não é só uma questão de gosto, há certas comidas que associamos aos nossos e que, mesmo muitos anos mais tarde, continuamos a recordar.

Ainda hoje oiço falar de refeições e comidas com quase meio século. Não é por acaso que há marcas no mundo da alimentação que tocam exatamente neste ponto.

E se já temos memória porque não nos lembramos em adultos do que se passou quando erámos tão pequenos?

Foto Noita Digital, Unsplash

É a chamada amnésia infantil, quando em adultos perdemos a capacidade de nos lembrarmos de episódios que se passaram na primeira infância. Estamos a falar ali dos três, quatro anos para trás. Na maioria das vezes as memórias da primeira infância confundem-se com histórias que ouvimos. É um fenómeno que ainda está longe de ser totalmente compreendido. Há alguns fatores que parecem contribuir.

Por um lado, há que ter em conta as alterações no desenvolvimento dos processos básicos de memória, que ocorrem até à maturação na adolescência. Por exemplo, o hipocampo, responsável na formação da memória do tipo “quem, o quê, quando e onde”, desenvolve-se por completo entre os 3 e os 5 anos.

Por outro lado, a linguagem parece ser um fator relevante: do primeiro ano de vida até aos 6 anos as crianças passam do falar uma palavra (olá, mamã, papá) até serem fluentes na sua língua nativa.

A capacidade de uma criança verbalizar sobre um acontecimento quando este aconteceu permite estimar como se lembrará do mesmo, meses ou anos mais tarde. E quanto mais elaboradas e coerentes forem as histórias contadas pela família aos mais pequenos, maior capacidade terão estes de recordar os seus primeiros anos de vida.

O paradoxo. Se não nos lembramos porque somos influenciados?

Ainda que não nos lembremos dos primeiros anos da nossa vida, eles deixam vestígios na nossa memória que influenciam os adultos que eventualmente seremos. O laboratório de Cristina Alberini, neurocientista italiana e professora de neurociência na Universidade de Nova Iorque, investiga as bases moleculares dos processos de aprendizagem e memória.

Esta cientista interessa-se por entender quais são os mecanismos moleculares que estão na base da formação da memória de longa duração, a sua estabilização, persistência e fortalecimento. Alberini acredita que a identificação dos mecanismos que estão na base da disrupção ou fortalecimento é importante para compreender a memória em termos fisiológicos, mas também para caracterizar as doenças psicopatológicas.

De forma simples, o que propõe é que na primeira infância o hipocampo passa por um período crítico de desenvolvimento similar ao implicado no desenvolvimento da visão, da audição, da aprendizagem da linguagem.

É uma maturação funcional dependente da experiência em que o hipocampo e o sistema de aprendizagem do hipocampo estão altamente focados no processamento das primeiras experiências e no armazenamento de memórias infantis.

Cristina Alberini propõe que a amnésia infantil reflete um período crítico durante o qual o sistema de aprendizagem está a aprender como se aprende e se lembra.

É música para os meus ouvidos…

Foto Nat Lam, Unsplash

Talvez as memórias estejam lá, talvez só não saibamos como ativá-las. E a música parece ser um meio de ativação da memória

Em termos práticos, lembro-me do vídeo que mostra a bailarina de idade avançada que, tendo perdido a memória e locomoção, ao ouvir certa melodia começa com uma sincronização espantosa a mexer o corpo da mesma forma que o fazia em palco.

Ou o documentário Alive Inside. Ou ainda da história que Françoise Dolto, pediatra e psicanalista francesa, conta num dos seus livros sobre a misteriosa música que a sua paciente se lembrava detalhadamente nos sonhos. Veio a descobrir que era uma música de embalar que a sua ama indiana lhe cantava no seu dialeto nativo. A última vez que a tinha ouvido tinha sido pelos seus nove meses, altura em que deixou a Índia.

Em termos práticos, lembro-me do vídeo que mostra a bailarina de idade avançada que, tendo perdido a memória e locomoção, ao ouvir certa melodia começa com uma sincronização espantosa a mexer o corpo da mesma forma que o fazia em palco.

Ou o documentário Alive Inside. Ou ainda da história que Françoise Dolto, pediatra e psicanalista francesa, conta num dos seus livros sobre a misteriosa música que a sua paciente se lembrava detalhadamente nos sonhos. Veio a descobrir que era uma música de embalar que a sua ama indiana lhe cantava no seu dialeto nativo. A última vez que a tinha ouvido tinha sido pelos seus nove meses, altura em que deixou a Índia.

E quando nos lembramos de coisas boas que fizemos?

Bom, parece que faz bem à saúde! Mas não vale só fazer uma, há que fazer muitas e recordar, porque uma mente bem cultivada, bem ajardinada – como um vergel – faz muito bem à saúde.

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