PROTESTATIO ET CONFESSIO (I)
renuncio à verdade solitária ou particular
renuncio à fé sem amor, que é o puro subjetivismo
creio na dimensão militante de toda a verdade
creio no amor como fidelidade ao puro dom da graça
renuncio à esperança judiciária, distributiva,
que dá a uns a recompensa e outros o inferno
creio em Deus, força da vida e madrugada de todas as coisas
creio na reconciliação no amor como poder universal
renuncio a uma fé salarial e à visão sacrificial
que justifica a fome, a morte, a vítima
renuncio à vida do desejo como autonomia, que é o pecado
renuncio a um coração que seja em nós um rio que não corre
creio na ressurreição subtraída ao poder da morte
creio na liberdade do Espírito que desampara
os que só na letra se arrimam
renuncio ao fel das relações envenenadas
à sedução do dinheiro que compra a vida e a fama
creio na Páscoa do mundo que a Sarça transfigura
creio no trabalho do amor que borda a paz e a justiça
[Mourão, 2009: 201-202]

http://www.hyattmoore.com/painting/Dietrich_Bonhoeffer
A 9 de Abril de 1945, o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer era executado pelo regime nazi em Flossenbürg. Era uma sexta-feira de Quaresma. Daqui a umas semanas, 73 anos volvidos, o dia 9 de Abril coincidirá com uma segunda-feira de Páscoa. Nas bodas de prata da sua morte, em 2020, estaremos a celebrar a missa in coena Domini.
Vejo nestes cruzamentos, seguramente não como coincidências ou forçadas ideologias, oportunidades que interpelam a consciência cristã. Ler as Cartas e Escritos da Prisão, de Bonhoeffer [cf. 1988], tem constituído para mim uma experiência de reencontro com uma fé que se quer fundamentalmente pascal, porque a esse Mistério fundacionalmente ancorada. A fé adulta é aquela que se sabe existencialmente enxertada na memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.
O exercício da memória deve ser, para o cristão, um ato existencial com força sacramental. Explico-me: o sacramento da Páscoa é o sacramento da Memória. A celebração litúrgica desse ato existencial há-de ser o ponto-de-chegada e o ponto-de-partida de uma quotidiana experiência memorial da Páscoa de Jesus, e nunca um ornamento, mais ou menos erudito ou kitsch, de uma existência sem memória.
Fazer memória existencialmente litúrgica, ou liturgicamente existencial, é chegar à maturidade da fé e ser capaz das palavras ‘creio’ e ‘renuncio’, como José Augusto Mourão ou Dietrich Bonhoeffer.
PROTESTATIO ET CONFESSIO (II)
à banalização do mal eu digo não
à tecnologia das próteses e ao mercado
que conforta em nós Narciso, digo não
digo não à xenografia da catástrofe mole,
à vociferação que matou Abel
e à justificação da violência como lei
ao discurso peremptório digo não também
e à satanização do outro
que nos defende de nós próprios
digo não à maneira do ser humano
regido pelo «valor» de troca
e pelo imanentismo que leva ao caos pluralista
creio no universo libertado,
em expansão, e não feito apenas de acaso e de necessidade
creio no homem em devir
que vem do desejo e da Vida absoluta de Deus
e não do determinismo biológico
creio em Deus como a festa maior que há-de vir
e das encruzilhadas em que os pedintes nos surpreendem
creio no Deus das noites sem apelo
do silêncio insepulto
e das claras madrugadas
creio no Pai que no dom do Filho se retira
creio em Jesus Cristo, o Verbo feito carne
e voz de sangue inconspurcado
creio no dom que ele foi até ao fim
e a todos alcançou
creio na Páscoa do Espírito e do Fogo
creio no Espírito da diferença irredutível,
no intenso e no profundo que nos liga
ao espaço-tempo da presença-amante
[Mourão, 2009: 202-203]
No ano passado, mais ou menos por esta altura, visitava em Berlim a Topografia do Terror. Trata-se de um exercício de memória. Decidi fazê-lo sozinho, para exorcizar o medo, pois sabia, como todas as crianças, que o escuro mete medo. Por ali, o que se lê e vê é muito escuro. Mas, algures num recanto, via-se uma nesga de luz: era a secção de Bonhoeffer. Concluí: há vidas e mortes profundamente pascais que conseguem iluminar até os lugares mais escuros, onde jamais imaginaríamos ver luz.
E não é isso a Páscoa de Jesus?
Referências
Bonhoeffer, Dietrich. 1988. Resistenza e resa. Lettere e scritti dal carcere. Milano: Edizioni Paoline.
Mourão, José A.. 2009. O Nome e a Forma. Poesia reunida. Lisboa: Pedra Angular.
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