Aos que desaprenderam a sonhar.
Aos que nunca desistem dos seus sonhos,
aqui representados por Elizabeth Fonseca.
Naquele dia, chovia muito e o tempo se estendia em preguiçosa nostalgia. Tenho por hábito, logo cedo, verificar se a minha vizinha está à beira da janela. Faça sol ou chuva, eu conto com a sua presença distante nas primeiras horas da manhã. Abri as cortinas para olhar as minhas orquídeas e vi que havia um ramo a florir em exuberância sofisticada. Lá estavam orquídeas de um amarelo-sol, salpicadas de vermelho-vinho, muito pequeninas e perfeitas. Levantei os olhos para ver a chuva abrir caminhos sobre o vidro da janela e o gesto fez-me alongar o olhar, levando-me à janela da vizinha.
É uma senhora com bastante idade, com quem falei poucas vezes, observando-a todos os dias. Sei que é estrangeira e chegou para viver por cá há mais de cinquenta anos. Vive sozinha com o seu gato e passa grande parte do tempo à janela. Vai à rua raramente. Ao olhá-la eu percebi que estava mais melancólica do que o habitual, parecia triste e isolada. Uma vez, ela disse-me que o futuro já havia passado. Tudo que era desejo já não existia e o futuro é uma caixa de surpresas, nem sempre instigantes.
Quando não há desejo, não há sonho. Onde não há sonho, não há futuro. Eu pensei bastante naquilo que aquela mulher, entre a tristeza e a melancolia, me avisava – “o futuro deixa de existir quando os sonhos acabam”.
No momento, em que eu vi a vizinha na janela, dei-me conta do seu olhar a varar a chuva. Ela parecia não estar ali. Não posso afirmar que havia tristeza, melancolia ou distância, apenas que havia um profundo mergulho no nada. Lembrei-me da nossa conversa e voltei a refletir sobre o que ela havia me dito sobre o desejo. Sobre o futuro. Neste futuro feito de tempo que se sonhou, restam as histórias e a constatação feita de saber se fomos felizes ou não… se realizamos os nossos pequenos e grandes sonhos. Se fomos capazes de protagonizar o elenco que existe em nós, em todas as dimensões da vida.
A vida sonhada foi possível na história contada? A minha narrativa se compõe de conquistas, surpresas, dores pequenas e grandes, amores e desamores, alegrias? O que fiz da minha história foi a partir daquilo que um dia sonhei? O que sonho eu agora, no futuro que já se foi? Tenho tempo de voltar atrás para rebobinar a minha vida e sonhar outros sonhos?
De repente, numa espécie de susto, apercebi-me que a vizinha me olhava diretamente. Como a chuva havia abrandado, abri um pouco a janela. A mulher repetiu meu gesto, muito intencionalmente.
Eu a cumprimentei: − Olá vizinha! Como está a senhora? Viu que lindas orquídeas floresceram deste lado de cá? Ela respondeu-me com objetividade: − Bom dia menina. Só há orquídeas desse lado. Por cá, chove numa floreira velha e vazia, sem flores. Sem pássaros. Só chuva.
Aquela mulher não estava bem e preocupei-me porque, embora ela vivesse naquela moradia há muitos anos, nunca a vi conversar ou receber alguém. Sabia que era estrangeira e havia fugido da guerra e a arquitetura da sua alma era o desgosto. Para além dela, só o gato resistia ao tempo dentro daquela história.
Acrescentou que a sua moradia sobrevivia na eternidade da sua infância. Nas memórias que um dia foram futuro. Mas o tempo passou e o futuro se realizou, sem que ela desse conta. Falou-me dos pais e avós, da vida na aldeia longínqua, do fogo aceso durante os serões da família, do frio avassalador que se instalava na casa de pedra, dos irmãos…tudo era passado, somente a guerra persistia.
− Nasci na guerra. Quando eu era criança achava que a guerra era a condição vivida por todos. Somente a guerra atravessava o tempo. Ora com grandes intervalos, ora sendo constante e devastando tudo que existia. Sem perdão. É por isso que estou aqui e nunca mais vi ninguém. Mas sempre sonhei em rever alguém que me pudesse devolver a família, a casa, o tempo e o fogo aceso. Agora não sonho. Tudo já foi vivido e contado. Resta-me esta janela e o meu gato. Queria rever a minha mãe, o meu pai e irmãos… − Disse-me a senhora, onde já não havia tristeza ou melancolia. Existia somente constatação.
Eu disse-lhe que se fosse necessário, quando precisasse de mim, estendesse uma toalha na janela. Seria um sinal de que algo se passava e eu deveria ir até lá. Durante muitos dias, após o período de chuvas, eu não vi a vizinha à beira da janela. Considerei estranho, mas como não se via nenhuma toalha, entendi que a mulher tivesse mudado os horários de ir à janela, ou estivesse distraída com o seu gato…não sabia muito o que pensar.
Ontem, ao final da tarde, vi uma jovem alta e magra a tocar a campainha da casa da vizinha. Estava vestida com roupas muito simples e trazia um velho casaco preto. Além das roupas, tinha uma mala pequenina de cartão e um jarro com flores brancas. Parecia cansada. Depois de algum tempo, a senhora abriu-lhe a porta. Vi que se abraçaram longamente e a vizinha chorou. Depois entraram. Foi a primeira vez que vi alguém entrar naquela moradia.
No outro dia, mal acordei, fui à janela e para a minha surpresa lá estava uma toalha estendida sobre o parapeito. Fiquei surpreendida e fui até a casa da vizinha para saber o que se passava. A jovem morena, esguia e sem falar português, abriu-me a porta com um sorriso desconfiado. Entrei e lá, sentada num cadeirão verde-escuro, estava a minha amiga, da qual eu nem sabia o nome. A casa estava iluminada e flores brancas se erguiam vitoriosas na velha floreira.
− Colocou a toalha. Precisa de mim? − Perguntei-lhe.
− Não preciso de si. Preciso de que me ajude a rebobinar a minha história. Ontem o sonho entrou porta adentro, fugiu da guerra e do medo, trazendo flores e um álbum de fotografias. Trouxe-me pedacinhos da minha história sonhada e eu descobri que existem mensageiros de sonhos. − Respondeu-me a vizinha.
Depois, numa longa conversa que se alongou pelo dia, contou-me a sua história. Aquela jovem era a sua sobrinha-neta que conseguiu fugir da guerra e bater à sua porta para pedir-lhe ajuda. Trazia consigo quase nada, mas estendeu-lhe as mãos, nas quais carregava um bocado de sonho e o desejo de que a sua velha tia a ajudasse a superar as perdas e reconstruir a vida. Tudo que pedia era ajuda para continuar a sonhar o seu sonho, o futuro feliz e sem medo. Mas não sabia ela que, ao entrar naquela casa, salvava a história da sua velha tia, devolvendo-lhe mais do que memórias, a capacidade de sonhar.

Eu aprendi que enquanto houver vida, haverá uma história para se sonhar. Um querer para se desejar e muitos mensageiros de sonhos, surgidos de outras histórias e a precisar de uma porta aberta para entrar e iluminar os dias de quem desaprendeu a sonhar. Interessantemente, aquela senhora me chamou para informar que havia reformulado as suas ideias sobre o tempo, pois em todos os finais existe um novo princípio.
Na guerra não há vencedores. Só há perdidos. Logo, conseguir sair de uma guerra exige muita capacidade para sonhar e continuar a sonhar.
Outro dia, na frutaria que fica ao final da rua, encontrei a minha vizinha e sua sobrinha. Esta já fala português, inscreveu-se na faculdade e conseguiu integrar-se num grupo de jovens que visita pessoas que perderam os seus sonhos. A vizinha disse-me que está a reconstruir a velha floreira e sonha em plantar flores coloridas e fazer uma bela viagem com a sua sobrinha. Perguntou-me se eu ficava com o gato, pois não queria deixá-lo a vaguear pelas ruas. Convidou-me para um chá ao final do dia e sorriu-me com os olhos. Quanto à jovem, continua a acordar pessoas para fazê-las sonhar. Se acreditas na reconstrução do mundo e da paz, junta-te ao grupo de mensageiros de sonhos e bate à porta de alguém que desaprendeu esta arte ou ofício. Sim, sonhar é ofício divinamente humano.
E tu, sonhas qual sonho? Como diz António Gedeão:
Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
(…)
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança
Pedra Filosofal, in Movimento Perpétuo, 1956
Foto da capa: Foto MSA 2023