A transgressão da lei da morte

A celebração da nossa Páscoa aparece este ano ensombrada pelos crimes de sinistros abusos, demasiado tempo mantidos encobertos. Embora praticados apenas por alguns dos membros da Igreja, esses escândalos estão a abalar os alicerces da sua credibilidade. Há quem passe a ver a Igreja como um espaço inabitável, há quem a olhe com muitas perguntas e interrogações, há também quem se aproveite para a atacar despudoradamente.

As consequências deste flagelo não se sentem apenas no sofrimento das vítimas diretas dos abusos. São também vítimas os padres em geral, que nada tiveram a ver com esta desgraça, mas que podem passar a ser olhados com o estigma da suspeita.

No meio dos contornos duros desta situação, torna-se urgente ultrapassar o nível das emoções e dos ruídos ampliados pela comunicação social. Os abusos e o seu escondimento pedem uma conversão que seja muito mais do que lamentar profundamente o sucedido.
Para além da reparação dos danos, centrada nas vítimas, é muito importante prospetar novas possibilidades de uma Igreja menos clericalista e avançar para a construção de novos possíveis de sinodalidade.

Na história da Igreja, as suas fraquezas deram também lugar a uma conversão purificadora, que a fez percorrer novos caminhos. Esta triste situação a que assistimos reclama uma mudança daquilo que esteve na sua génese estrutural, solicitando da Igreja o desapego do seu passado de triunfalismo constantiniano, que a fazia estar acima do escrutínio a que hoje se submetem todas as outras instituições da sociedade.

Nas maiores obscuridades da vida podem surgir cintilações luminosas que nos animam a caminhar para o futuro com uma mais dilatada largueza do olhar. Nas situações de fragilidade aprende-se melhor que é a humildade que pode tornar mais verdadeira a relação com os outros e com Deus.
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Será uma grande desgraça, se o mar agitado em que agora navega a Igreja a fizer fechar-se dentro de muralhas de defesa, em vez de ela se deixar interpelar pelo que aconteceu. Para um barco que não saiba a que porto quer chegar, os ventos serão sempre contrários.

Apesar de todas as interrogações e dúvidas, não desistamos de acreditar que foi da aurora da Páscoa que irradiou um fulgor de vida que nenhuma morte jamais conseguirá definhar.

O nosso Papa convidou-nos no início da Quaresma a “despojar-nos daquilo que nos sobrecarrega para reacender o fogo do Espírito Santo, que habita escondido entre as cinzas da nossa frágil humanidade”. Foi esse fogo luminoso que irradiou da aurora da ressurreição, fazendo com que a espessura da pedra do sepulcro não conseguisse impor a lei da morte. Nenhum sofrimento tem sentido cristão, se for um dolorismo masoquista que se fixa na sexta-feira santa, sem nunca chegar à manhã de Páscoa.

A fé cristã não esconde as feridas da vida, mas ensina-nos a viver com as suas cicatrizes, as quais ajudam a conhecer melhor o que é verdadeiramente a graça. A festa pascal não é uma exultação superficial motivada pelas circunstâncias favoráveis que acontecem na vida, mas uma alegria profunda que nos coloca na rota da vida prolongada na eternidade de Deus.

Para aqueles que acreditam que Cristo ressuscitou também ressuscita a sua esperança criativa. Que a Ressurreição seja celebrada como uma insurreição contra as fatalidades que sepultam a nossa confiança. Saboreemos as festas pascais como quem entra na grande dança do esplendor eterno.

Foto da capa: Que a Ressurreição seja celebrada como uma insurreição contra as fatalidades que sepultam a nossa confiança.

Pormenor da Ressureição de Cristo, Prospero Fontana, 1563-65 ca. | Fotos Saiko, Fundação Tiziana Sassoli. Commons Wikimedia.
Prospero Fontana (1512–1597) foi um pintor de Bolonha, Itália, do final do Renascimento e da arte maneirista.

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