Arrumar a casa (literalmente)

Arrumar a casa é uma tarefa de todos os dias e também dos dias especiais:
“é só dar um jeito às coisas”, “vou aproveitar que os dias estão melhores para fazer uma limpeza a fundo”, “antes de sair tenho de dar uma volta aos quartos”, “hoje é dia de tratar da roupa”, “não posso ficar mais tempo, porque preciso de ir adiantar o jantar”, “amanhã temos visitas”…

Uma das  tarefas mais silenciosas e invisíveis do mundo

De quem são as mãos? Foto MSA / Dino
De quem são as mãos? Foto MSA / Dino

Todos os dias e nos dias especiais, há mulheres (sim, são as mulheres) que fazem desaparecer os objetos a mais deixados fora do sítio, que dobram a roupa amontoada em cima da cadeira do quarto, que se agacham para tirar o cotão do canto da entrada, que varrem as migalhas da véspera ou devolvem a transparência aos vidros da sala, que cosem botões e limpam o pó dos armários, que retornam as cadeiras à volta da mesa, desengorduram os bicos do fogão e lavam o chão das casas de banho. Para que tudo pareça na mesma.

Arrumar a casa é para todos os dias, mesmo os especiais. Os dias especiais são exigentes de véspera e no dia seguinte. São os dias em que especialmente as mulheres têm tarefas a dobrar: a de arrumar a casa e a de, como dizem no Brasil, se “arrumar” a si mesma, mais cuidado na roupa e no penteado, sem descuidar o sorriso que também é preciso colocar no rosto. Para que tudo pareça no lugar certo.

Não sei onde estão as mulheres que agora leem estas linhas. Desconfio, porém, que em Portugal ou em Moçambique, por exemplo, algumas folheiam as páginas da revista num tempo roubado às tarefas da casa. Quase que apostaria que não estão sentadas no alpendre a aproveitar os primeiros dias da primavera, mas provavelmente na cozinha, corpo meio fora da cadeira, vigiando a comida que está ao lume. Porventura as haverá também que, no sofá da sala, se concedem os últimos minutos do dia passando páginas, televisão ligada a fazer companhia, os filhos e o marido ao lado, entretidos com o telemóvel. Tudo parece estar bem.

Não sei quem são as mulheres que agora leem estas linhas. Têm uma profissão? Estão reformadas? Assinam a revista ou encontram-na entre outras em cima da mesa do centro de dia ou do consultório? Sentem-se novas ou velhas (independentemente da idade)? Leem a revista de fio a pavio ou apenas veem os títulos e rezam baixinho as orações a Santo António?

Hoje como ontem cumpriram a milenar função de manter o mundo nos eixos

Igualdade de género nas tarefas domésticas. Foto MSA / Dino
Igualdade de género nas tarefas domésticas. Foto MSA / Dino

Porém, todas elas, “a despachar” ou com afinco, já arrumaram hoje, e ontem, e desde que, pequeninas, ajudavam a mãe ou a avó: puxaram as orelhas à cama, endireitaram o naperon com a ponta dos dedos, trocaram a toalha das mãos e fecharam a tampa do frasco de champô. Num trabalho minucioso e invisível, cumpriram hoje, como ontem, a milenar missão de manter o mundo nos eixos. Tudo parece no mesmo lugar.

Só que não é indispensável, não é um privilégio, não é bonito, não é uma missão. É um trabalho. É uma função. E a maior parte das vezes é a função das mulheres (nunca foi uma escolha) herdada como uma imposição silenciosa, insidiosa, mesmo no mundo moderno e avançado.

E depois ouvimos dizer que é tão importante esse modo discreto como as mulheres equilibram o mundo, equilibram o quotidiano. Depois, há os discursos que querem consolar, que tentam justificar e aqueles que (perigo!) pretendem educar.

Lembram-se dos “dez anõezinhos da Tia Verde-Água”? A jovem casada que se dava mal com o marido porque as coisas em casa nunca estavam arrumadas? (Leia-se, porque ela não tratava da casa). Quem a ajudou? Os dez anõezinhos. Segundo a Tia Verde-Água, a magia de uma casa num brinco (leia-se de um casamento feliz) eram os dez dedos da jovem a fazer a lida doméstica. Esta moralidade binária e simplista (em que a “culpa” é da esposa que não sabe cumprir o seu papel) representa um tempo antigo, mas que infelizmente não está ultrapassado.

Uma tarefa invisível que se soma a tantas outras…

Não quer dizer que as mulheres não arrumem a casa com amor e com dedicação. Não quer dizer que não haja homens que também o fazem. Mas quer dizer, sim, que a exigência continua a recair de modo desequilibrado na tua mãe, na tua irmã, na tua mulher, na tua filha (e em ti, se és mulher). Elas assumem uma tarefa invisível, que se soma a tantas outras: profissionais e familiares, pessoais e da comunidade.

Arrumar a casa é uma tarefa de todos os dias e também dos dias especiais. Mas não é especial. Se for assumida por todos em casa será certamente menos invisível. Tudo parecerá estar no lugar certo, sobretudo o mundo estará mais equilibrado e os dias terão espaço para serem um pouco especiais. E mais justos.

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