Não sendo filho de lavradores, nasci na aldeia e tive ainda um contacto muito grande com os pesados trabalhos do campo, em todas as estações. Esta nostálgica memória foi a primeira impressão que o filme me causou, desde o início. Sem bucolismos românticos, mas antes um reconhecimento feliz dos objetos e das canseiras.
Depois, foi aquele correr lento do tempo, marcado e estruturado pela nobreza do trabalho e pela resiliência quase inesgotável daquelas mulheres que ficaram, e que guardam e tomam conta da quinta e de todos os seus afazeres, no campo e dentro de casa, assegurando assim a continuidade da economia familiar. “Uma mulher de valor, quem a poderá encontrar?”, pergunta o sábio (Provérbios, 31,10.13.17). E acrescenta: “Ela procura lã e linho e trabalha de boa vontade com as suas mãos… Cinge fortemente os seus rins e os seus braços têm sempre força”.
Estamos nos anos da Primeira Guerra Mundial, algures na Bretanha, França. Os homens partiram para o campo de batalha e, por isso, este é um filme de mulheres, das mulheres que ficaram, que explora também os seus desejos e os seus conflitos, as suas lutas e dificuldades.
É um filme de uma solenidade extrema e magnífica, muito belo, profundamente devedor à pintura realista francesa do seculo XIX, Millet nomeadamente. Às vezes, parece que foi uma tela que ganhou vida e movimento ou então que somos nós que estamos dentro de uma dessas representações.
E é ainda um filme onde os sinais da fé são muito presentes. Sobre aquelas mulheres com vidas tão sofridas e pesadas paira sempre a iminência da morte. A imagem de Cristo pendurada na parede, a oração de joelhos diante dela ou as orações na igreja são um refrigério importante para a alma. (Xavier Beauvois, o realizador, é o mesmo que nos deu o belo filme Dos Homens e dos Deuses).
Mas, como acontece em todas as vidas e relações, nem tudo é perfeito neste filme centrado e iluminado por Francine, uma rapariga órfã que chega à quinta da matriarca Hortense e sua filha Solange para as ajudar, durante a ceifa do trigo. Só que ela é tão eficaz e capaz que vai ser contratada para ficar. E tudo corre bem até ao momento em que, acima da verdade e da justiça, se sobrepõe a ‘proteção da família’. E ela vai ser ‘sacrificada’ e mandada embora. É então que Francine vai revelar-se o grande sinal de vida e de luz que iluminou o filme, desde que ‘apareceu’: grávida de Georges (filho de Hortense), que não lhe responde mais às cartas por causa da mentira que ouve da mãe, ela não só decide ter e educar o filho, corajosamente, como se transforma numa outra mulher.
E creio que este é também um aspeto interessante do filme: ao contrário de Hortense e de Solange, mulheres sobretudo tristes e amarguradas, que aceitam a lógica velha do patriarcado, Francine vai emancipar-se e libertar-se desse mundo e sugerir um tempo novo. O filme termina com ela, feliz e radiante, a cantar face às adversidades que a vida lhe trouxe.
Como diria Tomás Halík, “posso ter as feridas que o destino e os outros me causaram, mas elas podem transformar-se em pérolas”.
As Guardiãs, de Xavier Beauvois, Drama, M/12, França, 2017