Profeta da fraternidade universal
Queria ser o irmão universal. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos.
Papa Francisco, Fratelli Tutti, 287
Acaba de sair uma nova “fornada” de santos, recém-canonizados a 15 de Maio de 2022: entre elas e eles, Carlos de Foucauld. Pensei logo nele, qual Profeta do nosso tempo, confirmado pela definição dada pelo teólogo milanês, Pierângelo Sequeri: “Carlos de Foucauld é um dos profetas mais incisivos destinados, por Deus, ao deserto do nosso Ocidente secularizado”.
Apesar da sua vida ser um “ícone do fracasso”, o carisma da fraternidade universal, central na sua vida, constitui para o nosso tempo uma autêntica profecia. Aliás, o seu desejo de ir ao encontro do outro e de se tornar irmão do outro, interpela a todos: crentes e não crentes.
Mas quem era Carlos de Foucauld?

Charles-Eugène de Foucauld nasceu em Estrasburgo, França, a 15 de setembro de 1858, de uma família nobre. Morrerá em circunstâncias dramáticas, a 1 de dezembro de 1916, no deserto argelino.
Teve uma vida bastante curta, apenas 58 anos, aventurosa e complexa: foi um oficial de cavalaria, um brilhante explorador da África, um conceituado geógrafo e etnólogo, um linguista meticuloso e, também, um homem do Espírito, presbítero, monge e, por fim, eremita em Dar al-Islam.
A aventura inicia em 1880, quando partiu pela primeira vez para a Argélia. De seguida, resolveu viajar para Marrocos, disfarçado de judeu, juntamente com um rabino: aqui fez uma série de pesquisas geográficas que lhe valeram a medalha de ouro da Sociedade de Geografia de Paris.
Ao regressar a França, em 1886, redescobriu a sua fé, graças ao abade Henri Huvelin: a sua vida mudou radicalmente. Escreveu: “Assim que acreditei que Deus existia, compreendi que não podia fazer outra coisa senão viver para Ele”.
Durante uma peregrinação à Terra Santa, toma a decisão de se despojar de tudo para viver no caminho de Jesus. Quer tornar-se monge trapista e entra na abadia de Notre Dame des Neiges em Ardèche e de lá é enviado para uma nova fundação em Akbès, na Síria. Mas esta rigorosa vida monástica não o preenche. Regressa, então, a Nazaré, em 1897, para retomar a sua caminhada nas pegadas de Jesus. Em 1901, é ordenado sacerdote em Viviers, França.
O deserto acende novamente a sua alma, sente que “é necessário atravessar o deserto para receber a graça de Deus”. Estabelece-se em Beni Abbès, onde constrói uma casa e escreve a regra dos Irmãozinhos do Sagrado Coração de Jesus e depois a das Irmãzinhas. São as primeiras sementes de algo que só dará frutos após sua morte. Muda-se para Tamanrasset, ainda mais ao Sul. Estamos em 1905, ano em que inicia uma nova vida, ainda mais radical, num lugar que ele próprio define “abandonado e de abandono”.
Sozinho, dedica-se à criação de um poderoso dicionário de francês-tuareg e à transcrição de poemas e provérbios daquele povo. A oração preenche o resto de seus dias. Acompanha-o o evangelho do grão de trigo que cai na terra: “Devo converter-me, devo morrer, como o grão de trigo que, se não morrer, fica só”. É a sua profecia: o irmão Carlos acaba por ser assassinado, a 1 de dezembro de 1916, durante um ataque de saqueadores.
A sua biografia é a de um homem inquieto que nunca parou de procurar: a si mesmo, a Deus e, acima de tudo, a Jesus. Contudo, desde o início da sua estadia na Argélia em Béni Abbès, a sua maior aspiração foi a de lançar sementes de fraternidade universal.
Numa carta à prima Marie, em janeiro de 1902, escreve: “Pediste-me uma descrição da capela… A capela, dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, chama-se Capela da Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus; a minha casinha chama-se Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus, quero acostumar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e idólatras, a considerar-me seu irmão, o irmão universal… Pouco a pouco começam a chamar a esta casa, a fraternidade, e isso me agrada muito…”.
As Irmãzinhas de Jesus em Chelas
No final de 2021, a comunidade das Irmãzinhas de Jesus em Chelas (Lisboa), ligada à uma das tantas famílias espirituais que surgiram depois da morte do Irmão Carlos, encerrou a sua presença nesta periferia, após 23 anos de serviço aos pobres dos vários bairros. Como a casa do irmão Carlos, também a das irmãzinhas, se tinha tornado para muitas pessoas desamparadas, um lugar de acolhimento, de oração, de escuta e de fraternidade.
O que fica destes homens, mulheres e lugares (aparentemente) sem seguidores imediatos e sem vocações? Volto a citar palavras iluminantes do Pe. Pierângelo Sequeri:
Do irmão Carlos, o cristão deve aprender que normalmente a colheita não corresponde à sementeira; para cada geração o cristianismo deve aceitar semear mais do que aquilo que pode colher… Ele tentou imaginar companheiros, seguidores, uma forma de vida religiosa: nunca a viu chegar, mas isso não o distraiu dessa ideia fundamental de que não serás tu a ver a colheita da semente do Evangelho. Isso deve animar-nos e ajudar-nos a ser confiantes: quanto mais cedo aprendermos isso, melhor comunicaremos a serenidade do bom trabalho numa sociedade obcecada com a ideia de produzir, que desgasta os jovens até à exaustão.
O Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, cita no início e no fim, aqueles que podemos considerar “os pilares arquitetónicos da fraternidade”: Francisco de Assis e Carlos de Foucauld. Eis o Espírito Santo em ação que continua a lançar no cenário do nosso mundo profetas, santos, que nos ensinam a viver nesta terra, a nossa casa comum, como hóspedes e peregrinos, como irmãos e irmãs de uma fraternidade universal.
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