Contemplar como dom a vida criada

À memória da saudosa Doutora Manuela Silva, que me pedira este texto.

Apesar da perspectiva em que a tradição as lê, as narrativas bíblicas da criação não são uma ata protocolar do sucedido no começo do universo.

Se relatassem mesmo o que Deus teria feito materialmente “no princípio”, então deveríamos perguntar qual seria a ata mais objectiva: se a de Génesis 1, em que Deus é posto a criar o mundo e só ao fim o homem e a mulher conjuntamente, ou se a de Génesis 2-3, em que Deus é posto a criar primeiro o homem, depois plantas, árvores e animais, e só depois a mulher a partir do “lado que tinha tomado do homem”. Seriam duas atas contraditórias!

Não o são, porque não escrevem história nem física, mas metafísica aberta: elevam o leitor para além das coisas físicas. Não contam o começo, que resulta de uma causa direta, mas a origem do mundo e da vida, isto é, a sua essência e estrutura fundante, aquilo pelo qual uma coisa é o que é.

São interpretação feita pela fé, o cântico da Terra, uma visão interior do mundo que a gente vê pelo exterior. Descrevem de forma figurativa o deslumbramento de um contemplativo que fecha os olhos de carne e pensa: eu existo, existe a vida à minha volta e existe para mim, dada por Deus criador: já posso morrer, porque viver faz sentido.

Usando linguagem mítica e a metáfora da criação nas respectivas narrativas, a fé bíblica intuiu Deus a criar tudo pela palavra: contemplado a criar, dava-se como pessoa, continuando transcendente. O único elo de ligação com as criaturas era/é a Sua palavra, símbolo de comunicação, de alteridade e de distinção. Então, dizer “Deus criou o mundo e a humanidade” não é pensar que os arrancou do nada ou de matéria preexistente, em seis dias, por evolução ou duma assentada; nem é pensar no momento ou no ato da sua feitura física (da qual os narradores bíblicos nada sabiam). É um convite a contemplar nas coisas e nas pessoas uma abertura ao transcendente, vendo-as como feitas por Deus.

A narrativa bíblica da criação educa o leitor para contemplar o universo como dom de Deus

Assim, a narrativa bíblica de criação faz acontecer revelação de Deus por meio da fé. E espera que aconteça revelação para o leitor, educando-o para a contemplação, não no domínio do amor humano (como no Cântico dos Cânticos), nem na esfera do pecado (como sucede nos profetas), nem no campo da atividade política (como se verifica nos livros de Samuel e de Reis), mas no olhar para o universo: que o contemple como dom de Deus. E espera o envolvimento do leitor com Deus: que viva à altura de tão grande dom e da dignidade de imagem de Deus.

Realmente, contemplar a vida como criada por Deus significa vê-la como totalmente dada: dom definitivo, irreversível. Dom de Deus e dom para o humano. Se na vida das pessoas o que interessa é o sentido que lhe conseguem dar, essa é precisamente a intenção fundamental das narrativas de criação: pintando Deus a criar o mundo e a vida, querem ser oferta de sentido para o leitor, prevenindo-o e armando-o contra a ameaça do sem-sentido; querem ser resposta à sede de Verdade e à necessidade de sentido, que o ser humano não dispensa.

A narrativa da criação une e dá sentido ao que parece separado e oposto

Ao reconduzir o olhar da fé a um Princípio unificador visto em Deus criador, a narrativa da criação une o que parece separado e oposto, dá razoabilidade ao que parece irracional, juntando “o bem e o mal”, o homem e a mulher, o agradável e o sofrimento, a vida e a morte numa unidade harmoniosa que enche tudo de sentido (como se percebe de Génesis 2-3). Ao ver a vida em Deus, ligada a Ele e procedente d’Ele, Ele aparece como o sentido último dela: porque está na sua origem e é o Ser do ser dela, Ele é que lhe dá sentido radical, pois sem Ele ela não existiria. Ele aparece assim como a Razão e a Verdade última da vida.

Esta é um dom inevitavelmente associado a limitações, inerentes a tudo o que é físico e material. Mas as limitações não são propriamente um mal. A consciência do limite é uma fonte de boas relações, de relações integrais, com a natureza (árvores, águas, montanhas), com os animais, com o humano semelhante e com o fundo misterioso que tudo transcende (Deus), porque nos coloca com humildade diante da natureza: ao vê-la como criada por Deus, a fé bíblica contempla-a com respeito e admiração. A vida é um dom com o selo da caducidade e do perecível, sim; por isso, dom irrepetível. Mas não deixa de ser dom com sentido, que ninguém pode arrebatar a quem dele goza pelo nascimento. Por conseguinte, não se pode estragar ou inquinar.

De Deus tudo procede e a Ele deve voltar

Efetivamente, “Deus ama este mundo a tal ponto que lhe deu o seu Filho unigénito” (Jo 3,16). Supremo dom de Deus, Jesus vem valorizar ao máximo a obra da criação, especialmente a coroa da criação que é o ser humano. Mas, este dom já não pertence ao processo de criação que a fé situa nas origens de tudo. O Filho de Deus não é criado. Veio salvar a vida humana criada, manifestando da forma mais intensa o amor de Deus por ela e a orientação que ela deve seguir, “para louvor da glória do seu dom gratuito [kharis]”, para revelar definitivamente que de Deus tudo procede e a Ele deve voltar (Ef 1,3-14).

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