Estamos vivos

Nelson Nunes, em Diálogos com António 2020: Famílias como as nossas

Um pai, uma mãe, um filho. Em teoria, nada poderia haver de trágico numa história com um início destes. Talvez apenas uma narração breve e aborrecida sobre a harmonia do quotidiano. Esta não é essa história.

É-me incontrolável soltar um sorriso sempre que me falam em famílias funcionais, porque não sei nem nunca soube o que isso significa. Todas as famílias têm as suas disfuncionalidades, ou por uma relação mais tensa entre irmãos, ou porque os pais oscilam entre discussões irritadiças e paixões assolapadas, talvez porque uma mãe ame tanto um filho ao ponto de lhe sufocar as ações. Talvez eu olhe deste modo para as famílias, digamos, funcionais precisamente por nunca ter tido uma.

Costumo dizer que a minha família é um constante mais ou menos. Porque não cresci de uma forma convencional.

Tinha avós? Mais ou menos. Os meus avós maternos estavam emigrados na Alemanha e passei a infância a vê-los apenas duas vezes por ano e a conversar com eles semanalmente pelo telefone. Os meus avós paternos moravam na mesma vila do que eu, mas era raríssimo visitá-los – com alguma paciência, o distinto leitor perceberá em breve porquê. Portanto, tinha avós? Sim e não. Em teoria, tinha-os, mas estavam muito ausentes, especialmente aos olhos de uma criança, para quem o tempo não corre da mesma maneira – experimente convidar uma criança a ficar uma hora sem olhar para um ecrã, seja ele qual for, e verá como ela se exasperará num instante.

Nelson Nunes aos 3 anos, 1990
Nelson Nunes, escritor, aos 3 anos de idade

Tinha mãe? Mais ou menos. A minha mãe sempre foi uma força titânica. Ergueu-me como ser humano praticamente sozinha, enquanto batalhava contra forças que tinham tudo para nos matar, ao mesmo tempo que mantinha um trabalho que pagava mal e que mal dava para pagar as contas obrigatórias e indispensáveis. Nunca foi a figura clássica da mãe que é cuidadora e tranquila – ou melhor, nunca foi só isso. Era também austera quando me exigia bons resultados escolares e quando me exigia dureza na hora de olhar o mundo. Portanto, mais ou menos, porque a minha mãe não era apenas mãe – era pai e avós também.

A prestar-lhe um auxílio inigualável, havia a Zé. Que não era mãe nem avó – era “mais ou menos” as duas coisas em simultâneo, e talvez um pouco mais.
A Zé era minha ama e mantinha-me entretido enquanto a minha mãe trabalhava, das oito da manhã às seis da tarde de todos os dias da semana, salvo nas horas em que eu estava na escola.

O porquê de tudo isto reside numa singela pergunta: tinha pai? De novo, a resposta é: mais ou menos. Eu e a minha mãe fugimos de casa quando eu ainda não tinha três anos de idade. A violência era demasiada. A minha mãe tinha de conviver com um homem que a agredia, verbal, psicológica e fisicamente. Eu próprio terei sido vítima dessa violência, embora não me lembre de grande coisa desses tempos em que vivíamos debaixo do mesmo teto.

Lembro-me, todavia, de muitos episódios em que, nos dez anos que se seguiram à nossa fuga, o meu pai nos perseguia. Lembro-me do dia em que o meu pai colocou um revólver no meu colo e me disse que aquilo era para matar a minha mãe. Lembro-me de várias ocasiões em que o meu pai bateu na minha mãe em plena via pública. Lembro-me de muitas das noites em que o meu pai arranjava maneira de telefonar para nossa casa e ameaçar-nos de morte.

Lembro-me de termos mudado de casa por cinco vezes, para que ele não nos descobrisse o rasto. Lembro-me da noite de Natal em que ele me raptou por algumas horas. Lembro-me do medo que sentia, e ainda sinto, sempre que ouço a expressão “o teu pai”.

Porque, para mim, a palavra “pai” é má. Ainda estremeço ao ouvi-la e creio que isto só parará de ocorrer quando uma criança mo disser. É também por isso que nunca chamei “pai” ao meu padrasto. Trato-o pelo nome próprio, porque, para mim, nesta fase, “pai” ainda seria uma espécie de insulto, dada a experiência por que passei ao longo de toda a minha infância. Por isso, perante a pergunta “tens pai?”, a resposta é, novamente, mais ou menos. Porque o meu pai existe, embora nunca o tenha sido para mim. Simultaneamente, tenho um pai a sério que não é bem pai: o meu padrasto.

Como se vive nesta disfunção constante? O ser humano é fenomenal a adaptar-se, ainda que subsistam sempre algumas cicatrizes, que tornam a abrir-se de tempos a tempos. Tanto eu como a minha mãe carregamos cicatrizes, fruto da violência, mas também do medo constante em que vivemos ao longo de anos. Eu vivo com uma depressão crónica, flutuante, desde os 16 anos e tenho sobrevivido a ataques de ansiedade diários há quase uma década. Mas trabalhar e lutar para encontrar uma certa funcionalidade no centro da disfunção é o segredo para a sobrevivência.

E agrada-nos olhar para trás e perceber que, no meio de todas as trágicas possibilidades, tivemos a maior das sortes. Porque estamos vivos e em paz. Há esperança. Há sempre esperança.

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