Ir pelo mundo como portadores de paz

Artigo de Frei Isidro Lamelas, OFM

Foto da capa: Os seis ministros gerais da Família Franciscana. Início das comemorações dos 800 anos do Natal de Greccio e da Regra Bulada. Greccio, 7 de janeiro de 2023. Foto do site https://www.centenarifrancescani.org/

As datas e os acontecimentos do ciclo de centenários franciscanos que estamos a celebrar não podem ser para nós meras efemérides celebradas a olhar para o passado, nostálgicos dos feitos e virtudes dos que nos precederam. São, sim, uma ocasião propícia para: renovarmos, em fraternidade, o nosso Sim ao Senhor e ao Evangelho; revigorarmos a nossa sensibilidade contemplativa e caritativa; recuperarmos o sentido da gratuidade e responsabilidade de cuidadores da Casa comum; entregarmos as nossas vidas ao Senhor e aos irmãos, “sem nada retermos para nós”, como ensina Francisco de Assis (CO 20).

E, como nos tem ensinado o Papa Francisco que, continuando a fazer jus ao nome escolhido, nos propõe uma Igreja pobre e com os pobres, em ritmo e estilo sinodal. Um estilo que é dito assim na Regra franciscana:

Todos os meus irmãos que vão pelo mundo não litiguem nem armem contendas, nem censurem os demais, mas sejam mansos e pacíficos e falem honestamente como convém… nas casas onde entrarem, digam: paz a esta casa (3).

De onde nos vem uma série de reptos que julgo mais pertinentes:

  • Não ter medo do caminho nem de entrar nas casas: o tempo presente e futuro que nos cabe viver é também tempo do Espírito, em que Deus continua a mandar-nos ir pelo mundo a reparar a Sua Casa, e a entrar nas casas e famílias como portadores de paz.
  • Não adiar a conversão: para enxergar a estrada e caminhar juntos precisamos da metánoia pessoal e comunitária, isto é, da renovação da mente e da visão, para deixarmos que a fé transforme o nosso olhar sobre o mundo e sobre a história; para podermos ver mais longe e acolher profeticamente os sinais e as palavras de Deus no mundo de hoje.
  • Todos irmãos: Filhos do mesmo Pai e submissos a todas as criaturas, eis o nosso credo e forma de estar: Todos irmãos. Como nos ensinou o sábio papa Bento XVI, mais correto que dizer que Cristo nos ensinou a chamar “Pai” a Deus, é dizer que Jesus nos ensinou a dizer “Pai nosso”; e o adjetivo “nosso” não é menos importante que o substantivo “Pai” (La fraternidad de los cristianos. Salamanca, Madrid 2004, 70).
  • Irmãos “menores”: Este nome de marca que Francisco quis para os seus irmãos deve ser, também em nossos dias, uma denúncia das injustas desigualdades e uma crítica juvenil contra a cultura narcisista centrada no eu competitivo e individualista que busca a felicidade sem transcendência e sem os demais. Na verdade, como nos ensina o pobrezinho de Assis, “valemos o que valemos diante de Deus e nada mais” (Adm. 19,2).
  • Caminhar juntos: O nosso grande testemunho continua a ser o da Fraternidade segundo Jesus Cristo e Francisco. Uma fraternidade inclusiva e aberta aos “diferentes” e a todas as criaturas. Tanto mais que o nosso discernimento será mais lúcido se feito na Fraternidade e com a Igreja e todo o povo de Deus.
  • Como peregrinos e estrangeiros: Assim se lê no passaporte franciscano, de acordo com o timbre de Francisco que “desejou sempre para os seus filhos os direitos dos peregrinos… e queria que todas as coisas [dos frades] falassem de peregrinação” (2Cel 59). Num mundo onde nunca houve tanta gente sem pátria, sem teto, sem direitos… esta sinodalidade radical deve, pelo menos, inquietar-nos.
  • Cuidar da casa e dos irmãos: Mais que cuidar da casa comum é prioritário cuidar da comunidade da casa. A proteção e atenção aos idosos, doentes, menores e mais frágeis é uma prioridade que todos os dias tem de passar das normas e intenções para as práticas.
  • Reavivar o espírito de Família: Como dizia alguém, “se não caminharmos juntos, acabaremos por morrer sós”. Francisco e Clara deram origem a uma grande família que por todo o mundo não para de crescer. Mas, sobretudo na Europa, há também sinas de “morte”, talvez porque, como sucede em muitas famílias, temos caminhado de costas voltadas.
  • Não desistir do caminho: Como dizia um nosso confrade poeta, “o caminho não se acaba por nos sentirmos cansados” (Fr. Mário Branco). Sabemos que “o caminho da fraternidade é longo; é um percurso difícil, mas é uma âncora para a humanidade. Aos muitos sinais ameaçadores, à obscuridade do tempo presente, à lógica do conflito, nós contrapomos a fraternidade… não de iguais, mas sim de irmãos” (Papa Francisco, 4 fevereiro de 2022).
  • Recuperar a cultura do encontro e do diálogo: Começando pela escuta da Palavra de Deus, da voz da Igreja, dos sem voz; para podermos ser portadores de uma Boa Nova que responda realmente aos problemas de hoje.
  • Não ter medo de deixar morrer: O Senhor bem nos avisou que colocar vinho novo em odres velhos não resulta. Durante décadas, focámos a atenção na identificação do nosso “carisma e identidade”, conforme pediu o Concílio. É hora de arriscarmos deixar morrer o que impede o carisma e o profetismo de gerar vida.
  • Não temer a pobreza franciscana: Num mundo dominado pela ditadura da posse, do consumo e do descarte, ser livremente pobre pode tornar-se a grande fonte de riqueza e sustentabilidade material e espiritual.
  • Acolher a graça de recomeçar: Foram as últimas palavras de Francisco: Comecemos, irmãos! Andamos há muitos anos a dizer que “vivemos tempos de crise” e de “profundas transformações”, onde os pessimistas vêm o fim e os otimistas um kairós e uma oportunidade de recomeço e de coisas novas.

Os tempos que aí vêm dependerão de como acolhermos o desafio que nos chega de Assis e de Roma:

de recomeçar sempre, porque há algo belo e corajoso que pode ser feito. Podemos sempre recomeçar. O Senhor convida-nos sempre a colocar-nos em jogo, porque Ele abre novas possibilidades. Portanto, aceitemos o convite: afastemos o pessimismo e a desconfiança e zarpemos com Jesus.

Papa Francisco, 6 fevereiro 2022
Frei Isidro Lamelas, OFM
Frei Isidro Lamelas, OFM

Related Images:

%d