No dia 28 de julho de 2018, o padre José Tolentino Mendonça foi ordenado bispo numa celebração no Mosteiro dos Jerónimos e elevado à dignidade de arcebispo. Dom José Tolentino Mendonça é o novo arquivista e bibliotecário do Vaticano e escolheu como lema “Olhai os lírios do campo” (Mt., 6, 28).
Bibliotecário do Vaticano
Quando foi dada a notícia desta nomeação − e a nós, professores da Universidade Católica, ela tocou-nos de perto − a primeira ideia que me veio à cabeça foi: “o Cancioneiro da Vaticana vai ter um guardião português!”.
É um pensamento que tem algo de irrelevante e outro tanto de pedante. A quem interessa o Cancioneiro da Vaticana? O que é isso? Que importância podem ter esses papeis na imensidão do espólio do arquivo do Vaticano? O padre Tolentino, um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, um ensaísta lúcido e inspirador, é nomeado pelo Papa Francisco para um cargo na área da cultura da Santa Sé, e esta “santa” (vulgo, eu) a pensar no Cancioneiro da Vaticana! Ele há cada uma…
Esta é, obviamente, uma história pessoal. Primeiro, a de uma estranheza, logo, a de um encantamento. Finalmente, a de uma procura.
Cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer



Das aulas de Português do 10.º ano de escolaridade faz parte o estudo da lírica galego-portuguesa, a primeira manifestação literária em língua portuguesa, produzida desde finais do séc. XII a meados do séc. XIV.
No início da linha cronológica da história da literatura portuguesa simplificada, lá está ela, a poesia medieval, aqueles poemas numa linguagem estranha, que a stôra insistia em dizer que eram cantigas e que deveríamos imaginar com a música. Deveríamos imaginar também o ambiente cortesão, conhecer a diferença entre os jograis e os trovadores, entender a influência provençal (onde é que fica a Provença?), localizar a Reconquista Cristã e a formação Portugal no meio de tantos dados que nem sempre é fácil interiorizar, apesar dos esquemas de estudo que nos explicavam os detalhes, insistindo no “básico”: que os poemas (são cantigas!) estão compilados em três grandes cancioneiros − o da Ajuda (o mais antigo), o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana; que as cantigas têm muitas regras, nos temas e na versificação, e os três géneros principais são as cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer.
Como aluna do secundário e da universidade, recordo a sensação de encantamento em que essa inicial estranheza se tornava. Tudo à volta do elemento principal dos textos: a língua. A língua portuguesa que por vezes parecia tão a nossa, mas ainda assim arcaica, distante da que falamos hoje. Palavras antigas, porém novas, a aprendizagem constante da história da língua por inferência: do final (que conhecemos hoje) para a origem (estas palavras estranhas). Aprender a língua é aprender sobre nós e nestas cantigas temos uma fase de uma língua que já não é latim, mas que está apenas no início da sua evolução.
Nas mais de 1600 cantigas, podemos ler-nos a nós e à nossa história comum. Se há algo que ainda hoje me fascina é a forma como este tempo tão desconhecido (às vezes parece-nos mais distante do que o familiar império Romano…) de certo modo inaugura a narrativa da nossa identidade e é − se nele conseguimos entrar − um lugar de encanto que junta histórias da vida profana e da vida religiosa, onde nos (ante)vemos nas relações familiares, nas relações sociais, nas expetativas de vida futura, nas paisagens conhecidas, nos suspiros de amor, nas tarefas do quotidiano, e certamente também em prosaicas malvadezes e maledicências…
Flores do verde pino
Um dos aspetos importantes presentes nas diferentes cantigas é a natureza, em particular nas cantigas de amigo (genericamente, as que têm uma voz poética feminina, jovem e enamorada), entendida como espaço onde se desenrola a ação, mas também como confidente da protagonista: campo ou mar, flores ou ondas, animais e frutos são testemunhas e interlocutores (nem sempre amigáveis) da jovem apaixonada.
“Olhai os lírios do campo” não é verso de nenhuma destas cantigas, mas poderia ser. Os lírios do campo, como as flores do verde pino (cantiga de D. Dinis), as avelaneiras frolidas (cantigas de Airas Nunes e João Zorro) ou as ondas do mar de Vigo (cantiga de Martim Codax), estão aí para que os contemplemos e nos maravilhemos. Estão aí para serem objeto da nossa procura. Precisamos de procurar os lírios, como de procurar o mar, a terra, o livro, o pão, o rosto do amado, um rosto para o amor.
Diz-nos o haiku do poeta:
O peregrino pede
na hospedaria
um poema (1)
Cada peregrino terá o seu lírio, o seu poema. Aos meios de comunicação social, recém-ordenado bispo, D. Tolentino Mendonça diz, com simplicidade, que para ele não há diferença entre uma biblioteca e um jardim.
Sobressalta-nos essa evidência só agora revelada: não há diferença entre uma biblioteca e um jardim. Não é que a biblioteca seja como um jardim, ou um jardim como uma biblioteca, é que eles são a mesma essência: o lugar dos lírios, o lugar da pousada. Por isso, atrevo-me a baralhar os versos ao haiku:
O peregrino pede
no poema
a hospedagem
Cancioneiro da Vaticana
Na biblioteca do Vaticano, está guardada uma das três grandes compilações das cantigas medievais galego-portuguesas. A única, aliás, fora de Portugal. Memória dos primeiros tempos da nossa identidade em formação, memória de pessoas anónimas que nele vivem em verso, memória da coragem e da vontade de quem o quis construir (2) , o Cancioneiro da Vaticana é esse passado mas é também futuro. Como é futuro todo o património quando não fica fechado nas caves do desprezo ou da ignorância.
Agora, o Cancioneiro da Vaticana vai ter um guardião português. São muitos os poemas, as páginas, os lírios e os campos, porque não há diferença entre uma biblioteca e um jardim, entre a nossa identidade e a nossa hospedaria.
1. José Tolentino Mendonça (2013). A papoila e o monge. Maia: Assírio & Alvim.
2. Tal como o cancioneiro guardado na Biblioteca Nacional, o da Vaticana é um manuscrito encomendado em Itália no início do século XVI, pelo humanista Angelo Colocci.
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