Recordo uma banda desenhada do Calvin e Hobbes, onde o Calvin aparece a construir um muro à volta de si mesmo, entretanto o Hobbes pergunta ao Calvin porque faz isso e ele responde que é para se proteger; no segundo desenho o muro está quase completo e já da altura do Calvin; no último desenho aparece o Calvin já dentro de uma espécie de poço e apenas com uma frase: socorro (tirem-me daqui).
Tudo isto a propósito de uma frase da mensagem do Papa para a quaresma deste ano: “Quantos vivem pensando que se bastam a si mesmos e caem vítimas da solidão!”.
Às vezes o mundo parece um lugar estranho

Calvin é um miúdo de seis anos, que tem como companheiro Hobbes, um tigre sábio e sarcástico, que para alguns não passa de um tigre de peluche.
Tudo apela ao consumismo, a sermos donos de tudo, a comprar sempre mais, a possuirmos o máximo, a rodearmo-nos de cada vez mais coisas. Paulatinamente torna-se natural sermos auto-referenciais e julgarmo-nos auto-suficientes.
Quase sem notarmos vamos pensando que não precisamos de mais ninguém, que nos bastamos a nós mesmos, que os outros só ‘interessam’ quando nos são úteis ou quando nos dão jeito.
Não são poucas as vezes ou as circunstâncias em que nos sentimos ‘usados’ ou que alguém só se lembra de nós quando precisa. Nessa altura percebemos que muitas das relações, mesmo algumas mais próximas, são feitas mais de interesses do que de autenticidade e de amizade.
Reaprender a gratuidade
Mas também é verdade que muitas vezes somos nós que só procuramos os outros quando precisamos deles. Pensemos nas vezes, por exemplo, em que ligamos a alguém: porque ligamos? Grande parte das vezes é para pedir ‘favores’. O mal não está propriamente aí, mas quando as nossas relações se esgotam aí.
Precisamos de aprender o sentido e o sabor da gratuidade e da generosidade. Precisamos da surpresa de uma mensagem simplesmente a saudar alguém ou deixar uma palavra de ajuda e incentivo.
Quantas palavras de reconhecimento e de agradecimento ficam por escrever ou por dizer?! Quantos abraços sinceros e espontâneos ficam por dar e por partilhar? Quantos sorrisos e quantas gargalhadas ficam contidas na rotina dos dias?!
Quem dispensa os outros acaba por cair na solidão
De facto, como nos recorda o Papa quem dispensa os outros e pensa que se basta a si mesmo acaba por cair na solidão. Nessa altura, surge o ‘grito’ (muitas vezes, em silêncio): socorro (tirem-me daqui). Tirem-me da teia que eu próprio construí, tirem-me do poço onde me enfiei, tirem-me da solidão que eu próprio fui promovendo. Consciente. Mas em tantos momentos – inconscientemente.
Se eu quero ser o único, se eu quero ser o maior, se eu quero ser sempre o primeiro… a probabilidade de ficar só aumenta exponencialmente. Parecemos ‘eucaliptos’ que sugam a água toda à sua volta.
A solidão torna-nos vulneráveis
Nessas alturas somos presas fáceis. Nessas alturas os falsos profetas aproximam-se. O Papa fala de “’charlatães’ que oferecem soluções simples e imediatas para todas as aflições, mas são remédios que se mostram completamente ineficazes”. Parecem abutres que ‘cheiram’ a fragilidade.
Mas quando estamos sozinhos, quando ficamos apenas connosco próprios é fácil aceitar qualquer proposta, é fácil ceder, é fácil cair na armadilha criada por outros (ou mesmo por nós).
O Papa continua dizendo:
A quantos jovens se oferece o falso remédio da droga, de relações passageiras, de lucros fáceis mas desonestos! Quantos acabam enredados numa vida completamente virtual, onde as relações parecem mais simples e ágeis, mas depois revelam-se dramaticamente sem sentido!
O mesmo mundo que tirou a alegria da partilha e o sabor da generosidade, agora tenta remediar com mais ofertas, mas a sede continua. A sede mais profunda está lá. Como matar essa sede, como não cair nas ‘soluções fáceis’?
O Papa insiste que:
Estes impostores, ao mesmo tempo que oferecem coisas sem valor, tiram aquilo que é mais precioso como a dignidade, a liberdade e a capacidade de amar.
Temos sede!
Há uma sede de encontro, uma sede de abraço, uma sede de partilha, uma sede de generosidade, uma sede de gratuitidade, uma sede de autenticidade… É preciso ir à fonte, não a uma fonte qualquer, não a um tanque de águas estagnadas, mas à nascente inesgotável, à nascente de água viva – que é Jesus.
É disso que trata o diálogo de Jesus com a Samaritana quando este lhe diz:
Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!
(Jo 4,10)
Jesus é a água viva, a água que mata a sede mais profunda, a água com a qual se deixa de ter sede. Jesus é essa fonte porque nos ama, porque nos ensina a gratuitidade, a generosidade, a partilha, o acolhimento, a verdade, o perdão… por palavras, mas sobretudo por gestos concretos.
Quando nos damos aos outros como Jesus nos ensinou jamais cairemos na solidão. Quando amamos como Jesus nos ensinou as nossas sedes mais profundas ficam saciadas.
É bom e natural ter sede… mas temos que repensar nas fontes a que recorremos para matar a nossa sede. Há águas contaminadas… que matam! Mas também há águas que dão (mais) vida.
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