O abrigo no caminho

Sínodo é caminho em conjunto, em comunhão. Todavia, não é um caminho qualquer, sobretudo não é um caminho que se possa considerar estultamente como ‘já feito’, que basta apenas repercorrer.

O sínodo é o modo de a comunidade avançar: mesmo que não haja de tal consciência, caminha-se sempre em conjunto, melhor ou pior, em conflito ou em comunhão. Não há, neste mundo, caminhos isolados, a menos que alguém seja princípio absoluto de si próprio.

Ora, nunca caminho algum a fazer – e são todos – já foi feito. Todo o caminhar, por mais repetitivo que possa parecer aos desatentos ao pormenor que constitui o âmago da ação, é, sempre, original: é um trilhar. Trilhar significa abrir um novo caminho. O que há pela frente é sempre uma ainda-não-caminho, que é um caminho possível; o que há no ato de caminhar é sempre um trilhar, um literal «fazer caminho», pôr no mundo uma nova abertura de possibilidade de ser; o que fica para trás é um carreiro, que corresponde ao monumento do que foi o trilhar.

Mesmo quando alguém usa o carreiro por outro aberto, esses que são os seus passos são sempre originais, nunca existiram antes de ser postos em ato. E, se houver real coincidência de esse que caminha com os passos dados, se a pessoa estiver «toda» em tal caminhar, então, a sua aventura, mesmo sendo feita sobre um carreiro por outro ou outros aberto, é, ainda assim, porque radical e inadmissivelmente sua, um trilhar, o trilhar-se como caminho.

Mesmo em solidão, porque se caminha sobre isso que foi o trilhar de um outro, caminha-se sinodalmente, pois, se bem que sem coincidência temporal, há uma colaboração real entre o que primeiro abriu o caminho – quiçá para todos (por exemplo, Cristo, com seus atos paradigmáticos) – e esse que trilha o seu próprio caminho. A originalidade é sempre ontológica, diz sempre respeito ao ato que cada um talha para si próprio e para os outros. Relembra-se que não há viver humano que não seja necessariamente sinodal.

Ora, quem caminha sabe bem que caminhar, sobretudo em função de trilhar, cansa. Não é por acaso que ao longo dos caminhos se fundaram estalagens, estações de muda, etc., pois quem caminha necessita, mais cedo ou mais tarde, de um abrigo para retemperar forças, para se aconselhar, para encontrar ou reencontrar humanidade, para conversar sobre ‘isso de caminhar’ com quem já caminhou muito, com quem já muito aprendeu com caminhar, com os sábios do caminho.

A tenda é, como se afirma no texto Alarga o espaço da tua tenda, um «espaço de comunhão», «um lugar de participação», «uma base de missão». Estas acepções são evidentes e dispensam qualquer explicitação. A tenda é, também, marco miliar no caminho, num caminho que outros, a seu modo irredutível e irrepetível, já trilharam, marcando um ponto de possível assembleia, um ponto de «ecclesia», ponto que marca a sacralidade quer da reunião das pessoas quer de ter havido pessoas que ali primeiro chegaram e ali primeiro ergueram tenda e nela se refugiaram, como quem se põe sob a proteção da mão divina ou do ventre da mãe.

A tenda permite ao exausto reganhar quantas forças possíveis, qual retorno ao materno útero, ao materno calor, ao materno amor, de que se sai reprístino, capaz de voltar a trilhar caminho, nunca só, pois, com o reanimado, vai o ato que o reanimou, pelo menos o de quem construiu a tenda como lugar de paragem, de realento.

Ou então, acabadas as forças definitivamente, na tenda se morre não como bicho em deserto, mas como pessoa em lar, pois a tenda é o paradigma do lar, não apenas do lar material, mas do lar como comunidade de bem, de amor.

Se a tenda for criada com espaço possível para mais de um, a tenda é um lugar de possibilidade de mais do que um, logo, de comunidade. Assim essa grande tenda que é o céu do mundo, como criado por Deus: sob ela, nela, cabem todos; nesta tenda cabem mesmo os que tal não desejariam.

A tenda é para todos. Assim também a salvação, como possibilidade oferecida por Deus. Sem violência. Sem obrigação. A tenda está aberta a quem quiser nela penetrar. Todavia, ninguém é obrigado a nela entrar. Eis o drama e a possível tragédia de cada pessoa, no limite, de todas as pessoas, pois a tenda pode ficar vazia.

Ora, a tarefa sinodal do cristão consiste em exemplarmente mostrar que há uma tenda, que essa tenda existe num caminho, que começa por ser possível, que, iniciado o caminho, é sempre possível penetrar na tenda, lugar em que encontrará o amor de que necessita para voltar ao caminho, isto é, à construção do seu próprio ser.

Apenas uma exigência é feita: que o fim do trilhar seja um fim de bem, que necessariamente – aqui não há alternativa que não seja contraditória – é um fim de bem-comum. Não há salvação «fora da tenda», isto é, fora de uma lógica de bem-comum. É neste sentido que «ninguém se salva sozinho», o que não significa fundamentalmente que a salvação não dependa dos seus atos, mas que tais atos só salvam se integrados numa lógica de bem para todos.

A grande tenda é, já não o céu cósmico do mundo criado por Deus, mas o Céu entendido como plena comunhão com Deus, mas também com todos os outros criados por Deus como sua imagem e semelhança. Deus não ‘descansará’ enquanto todas as suas criaturas não estiverem sob o manto da sua tenda. Todas.

A Igreja, no que é como ato de amor de Deus presente no mundo através da mediação dos Homens, é a tenda-nossa-de-cada-dia em que podemos, cada um, mas todos, refugiar-nos. Todavia este refúgio não é ao modo dos que têm medo, mas ao modo dos que penetram na tenda do caminho para poderem caminhar mais e melhor, para, sobretudo, poderem espalhar pelos que não penetram na tenda todo o bem que na tenda tiveram ocasião de haurir.

Ora, o bem, como Deus, é expansivo, é para se dar, é para florir, é para irradiar, qual infinito sol, para todos. Para todos sem exceção. Não há cristão ou pagão, santo ou pecador: há criaturas de Deus para quem Deus deseja o seu divino bem, mas a quem não pode violentar: que sentido faria a ‘violência do bem’?

Assim sendo, e cumprindo as «cinco tensões generativas», em harmónica tessitura, compete ao cristão, em sínodo, caminhando como quem transporta consigo não apenas o bom fim da humana cristã ação, mas também a tenda, fazer chegar a todo o lado, a ‘todo o Homem’, não só a mensagem salvífica de Cristo, mas a ação salvífica de Cristo, mediada pela ação pelo bem de cada pessoa, isto é, de cada um de nós. Sem isto, a Igreja é apenas vaidade e inutilidade.

Transcrevem-se as palavras do documento em que nos inspirámos

Esta tenda é um espaço de comunhão, um lugar de participação e uma base para a missão: compete ao terceiro capítulo articular as palavras chave do caminho sinodal com os frutos da escuta do Povo de Deus. Fá-lo sintetizando em cinco tensões generativas que se entrecruzam umas com as outras:

  1. A escuta como abertura ao acolhimento a partir do desejo de inclusão radical – ninguém excluído! –, a ser entendido numa perspetiva de comunhão com as irmãs, os irmãos e o Pai comum. A escuta aparece aqui não como uma ação instrumental, mas como o assumir uma atitude fundamental de um Deus que escuta o seu povo e o seguimento de um Senhor que os Evangelhos apresentam constantemente na escuta das pessoas que vão ao seu encontro ao longo das estradas da Terra Santa; neste sentido, a escuta é já missão e anúncio.
  2. O impulso para a saída em missão. Trata-se de uma missão que os católicos reconhecem dever levar por diante com os irmãos e as irmãs de outras confissões e em diálogo com os crentes de outras religiões, transformando as ações humanas de cuidado em experiências autenticamente espirituais, que anunciam o rosto de um Deus que se desvela a cuidar até dar a própria vida para que nós tenhamos vida em abundância.
  3. O compromisso de levar por diante a missão exige assumir um estilo baseado sobre a participação, que corresponde à completa assunção da corresponsabilidade de todos os batizados pela única missão da Igreja, derivada da comum dignidade batismal;
  4. A construção de possibilidades concretas de vida em comum, de participação e missão, através de estruturas e instituições habitadas por pessoas adequadamente formadas e sustentadas por uma viva espiritualidade;
  5. A liturgia, particularmente a eucarística, fonte e cume da vida cristã, que reúne a comunidade, tornando tangível a comunhão, permite o exercício da participação e nutre com a Palavra e os Sacramentos o impulso para a missão.

Foto da capa: Capela de Nossa Senhora de Fátima, Campo Nacional de Atividades Escutistas, Idanha-a-Nova. Foto 2017, Joao Morgado – Architecture Photography.

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