O Mal não Existe – O olhar da Raposa

Infelizmente, são ainda muitos os lugares deste mundo onde a pena de morte continua a existir e a ser praticada. Sirvam de exemplo estas notícias do Público, de 11 e 13 de Dezembro de 2020: Trump autoriza onda de execuções como não se via há 124 anos; Alfred Bourgeois é o segundo executado em dois dias pela administração Trump; Irão executa jornalista por inspirar protestos de 2017 contra o regime.

Infelizmente, como escreve o papa Francisco na Fratelli Tutti, durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos… Mas a história dá sinais de regressão. (FT 10 e 11).

Felizmente, a Igreja continua a ser uma voz e uma luz cada vez mais forte e veemente na defesa da pessoa e da vida, na sua oposição e condenação da pena de morte: Hoje, afirmamos com clareza que «a pena de morte é inadmissível» e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo. (FT, 263) Temos muito que trabalhar.

Vêm estas palavras a propósito do filme O Mal Não Existe, de Mohammad Rasoulof. Trata-se um realizador iraniano, menos conhecido do que Kiarostami ou Jafar Panahi, cujo objectivo é denunciar as injustiças, opressão e falta de liberdade existentes no Irão. Por essa razão, e como é habitual, já esteve detido e impedido de sair do país. Este é o seu primeiro filme estreado entre nós.

Um filme feito com o coração que procura pôr diante dos nossos olhos a realidade da pena de morte no Irão, não a partir do ponto de vista dos condenados, mas precisamente daqueles que a executam ou se recusam a executar uma ordem como essa, com as consequências daí inerentes.

O estratagema escolhido por Mohammad Rasoulof é contar-nos quatro histórias diferentes, ao que parece a partir de casos verídicos, e levar-nos a perguntar-nos de que lado é que nos colocamos. Como nos situaríamos nós diante do dilema?

Por essa razão se invocou a propósito deste filme, a questão da banalidade do mal de Hannah Arendt, transplantada neste caso para o Irão, onde a banalidade da pena de morte é dramática. Somos apenas peões que executam ordens sem as questionar, como quem não tem alternativa? Ou, apesar de tudo, é possível recusar-se e assumir todos os riscos e consequências de uma tal opção? Como é possível ser-se um homem normal – pai atento, marido paciente, filho cuidadoso – e carregar no botão para enforcar com a maior das tranquilidades? De onde vem a força para não seguir em frente e retirar o banco, e arriscar tudo em nome da liberdade de consciência? A vontade e alegria de estar com a namorada no seu dia de aniversário, aproveitando os três dias de licença concedidos a quem mata em nome do Estado, podem justificar tal ato? De onde vem a serenidade e a paz para um pai que recusou uma execução mesmo sabendo que lhe seriam negados todos os seus direitos, até o de ver crescer a filha?

Não é fácil o julgamento e o filme torna-se interpelante por isso mesmo. Cada uma das histórias põe-nos perguntas e caminhos diferentes. Vale a pena parar para o ver, mesmo nestes tempos de horários estranhos. É que é demasiado fácil deixar-se escorregar pelo plano inclinado da lei e da ordem. E é demasiado difícil e exigente manter-se firme e fiel na estrada que não desiste nunca do carácter sagrado de cada pessoa, seja ela quem for, tenha ela feito o que for, para voltar ao papa Francisco.

Sheytan Vojud Nadarad (O Mal não existe)
de Mohammad Rasoulof, Drama, M/14,
ALE/Irão/República Checa, 2020.

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