O Sonho de uma Humanidade Nova

Enquanto escrevo estas linhas penso no recolher obrigatório que foi decretado para a grande maioria dos portugueses. Sei também que muitos europeus estão a viver esta mesma realidade nos seus países.

Ela não é novidade, pois já em diversas ocasiões a Europa se viu submetida a esta experiência. Mas os motivos eram outros, bem visíveis e palpáveis, enquanto agora, a destruição parece não se ver. Os edifícios estão em pé, os jardins continuam floridos, as estradas estão transitáveis e, embora tudo a este nível aparente uma certa normalidade, todos, de uma maneira ou de outra, somos capazes de perceber que algo de muito anormal se passa e por isso temos, de novo, de recolher a nossas casas para ver se abrandamos a destruição do tecido económico, se ajudamos a evitar o colapso dos sistemas de saúde, e, principalmente, se contribuímos para salvar vidas.

Sinais de cansaço

A verdade é que se isto é claro para a grande maioria, também já começamos a ver sinais evidentes de um certo cansaço que já se faz ouvir de uma maneira mais clara e ruidosa. Não me refiro aqui a quantos querem negar a realidade, não reconhecendo o quanto de grave ela tem. Pelo contrário, refiro-me a todos aqueles que, mesmo reconhecendo a gravidade do momento, estão de tal maneira desesperados que não conseguem aceitar todas as grandes mudanças a que os nossos estilos de vida estão a ser sujeitos.

Sem grande dificuldade todos somos capazes de reconhecer como muitos setores da nossa sociedade estão a passar por momentos muitíssimo difíceis. Para todos os que trabalham nessas áreas o futuro aparece cada vez mais sombrio, por isso compreendemos a sua angústia e os seus gritos. Mas como compaginar isso com a real necessidade de fazermos alguma coisa que possa alterar a dinâmica da pandemia que estamos a viver?

O que podemos fazer sem que ninguém fique para trás?

O que devemos fazer para que todos possam lidar com esta situação da melhor maneira possível, sem que ninguém fique para trás? Não será isto uma impossibilidade? Pensar assim não configura aquilo a que muitos apelidam de utopia?

Sei que sim, mas também sei, pelo menos disso estou cada vez mais claramente convicto, de que há utopias que são absolutamente necessárias para ousarmos caminhos diferentes, de modo a podermos alcançar resultados diferentes. Em muitos sentidos, esta experiência tão única que estamos a viver está a apontar claramente a necessidade de mudança de rumo.

Uma dessas utopias, capazes de impulsionar a transformação que o momento está a exigir, é aquela que podemos encontrar na recente Encíclica Fratelli Tutti. Neste texto somos todos convidados não só a sonhar uma nova humanidade, como igualmente a comprometermo-nos com a sua edificação e desenvolvimento.

É assim que Francisco descreve este sonho:

Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: «Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (…); precisamos duma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! (…) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos». Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.

(FT,8)
Ammersee, Bavaria, Alemanha, DEZ 2013.  Foto EPA/Nicolas Armer.
Ammersee, Bavaria, Alemanha, DEZ 2013. Foto EPA/Nicolas Armer.

Procurar o bem comum

O texto é o suficientemente claro para não precisar de muitas explicações, mas ainda assim gostaria de destacar algumas ideias.

Trata-se de um sonho que tem de convocar e comprometer todos, pois só deste modo seremos capazes de procurar o melhor bem possível para todos e para cada um, ou seja, de procurar o bem comum, que é o único capaz de nos ajudar a verdadeiramente responder às dúvidas atrás enunciadas.

É na medida em que soubermos reconhecer-nos como membros de uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne e habitantes da mesma casa comum, que seremos capazes de, mais facilmente e mais eficazmente, respondermos aos desafios que esta situação tão única nos está a colocar.

E para isso precisamos da força e do compromisso de todos, cada qual com a sua experiência de vida e com a sua situação, mas todos unidos numa fraternidade universal e em objetivos comuns.
Ao reler o paragrafo anterior de novo a dúvida se coloca. Não será isto uma utopia? Certamente que sim! Mas insisto, precisamos dela para fazer diferente e melhor. E em bom rigor, esta utopia nem sequer é nova e até a podemos considerar inspirada pelo Deus em quem acreditamos. Não é isso que celebramos no Natal? Não é isso que significa o mistério da encarnação, nota mais distintiva da nossa fé cristã?

Ao encarnar não está Deus a dizer-nos que ele próprio acredita e sonha com uma humanidade diferente?

Uma mesma humanidade que caminha na mesma carne que Deus faz também sua? Estou convicto que sim. Sei que sim!

Sejamos nós capazes, neste Natal, de ousar sonhar com Deus o sonho de uma humanidade nova.

Foto da capa: Papa Francisco na visita apostólica a Marrocos, 31 de março de 2019. Foto EPA/Ciro Fusco.

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