Oração, Palavra e Poder

Para Caio e Pedro que nasceram da mesma flor

Mesmo diante de um mundo difícil, não quero perder a esperança e, assim, faço da oração a palavra que me cura. É estranho, mas é certo. A oração me aproxima da minha esperança e traz-me alguma paz.

Sempre gostei da noite, de superar os desafios do escuro e dos medos. De adormecer sobre os livros e a música. Mas, acordar cedo é uma imposição do cotidiano que me traz o dia e o seus matizes. O dia convida à luz, mesmo quando a cor é cinzenta e a chuva encobre o sol. Com as manhãs chegam as coisas do mundo. Chega a velocidade. Outro tempo e outras oníricas.

O ritual que inaugura o dia é sempre o mesmo − por vezes, vario a música que abre a cortina da janela, onde tenho o meu pequeno canteiro de orquídeas. Hoje escolhi Chopin, Nº1, A Minor. Deixo a música ser a minha primeira sensação, antes de começar a olhar o dia e a sua claridade. Abro a janela e a primavera entra cavalgando o seu cavalo amarelo-alado. O cheiro verde e florido me faz fechar os olhos… surge-me a palavra oração, esta se espalha pelos recantos da brisa. O que vejo não me cabe nos olhos de tão bonito: uma natureza em tudo perfeita e equilibrada. Pujante de vida em todas as suas dimensões e sentidos.

A palavra oração me traz a palavra criação. A transcendência de todo ato criativo que se constrói em torno da vida e dos seus ciclos de tempo − metafísica da existência. Ali, muito perto de mim, desabrocharam duas orquídeas − tão pequeninas e idênticas. Dois nascimentos para aveludar o dia. Por perto, os pássaros de sempre, dizem “amém” e anunciam a chegada de Caio e Pedro, nascidos da mesma flor.

Oração, criação, transcendência e nascimento juntam-se na sua semântica de vida e repetição. São como a palavra poesia abrigada na palavra oração, trazendo uma mnemónica reconstrutora da memória ancestral. Vamos para a poiesis, pois “Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando.” (Barros, M. Poesia Completa). É da oração que o poeta Manuel de Barros fala quando anuncia o diálogo da natureza que se reconhece nas suas diferenças, desejando reconhecimento.

As duas orquídeas que desabrocharam, dialogam na minha janela. Os meninos que nasceram são como dois raios de sol. Continuarão o trajeto renovado de outras histórias, onde outros cavalos amarelos galoparão em torno da festa de Ostara, deusa da mitologia anglo-saxónica que carrega o significado de Páscoa e fertilidade; que traz a renovação e o renascimento após o inverno. Ostara é linda e luminosa.

Do outro lado do Atlântico, onde os meninos iniciam a sua oração pela vida, não é primavera, mas é como se fosse.

No momento, a primavera está connosco e nos oferece as mais belas flores e todos os verdes, independentemente da guerra, das lutas ideológicas, do pessimismo, do desrespeito pela vida e pelo outro e de toda a precariedade humana; pois a natureza cumpre os seus ciclos de vida tal como deveria ser.

Embora seja verdade que, até nisso, o ser humano tem conseguido interferir de forma negativa, agindo de forma violenta ao colocar em risco o equilíbrio ambiental e de muitos outros sistemas; ainda assim, é possível apreciar a vida de forma positiva. Buscar soluções que nos mantenham com ânimo pode ser uma das mais potentes estratégias de resistência contra tudo que nos desumaniza.

Sigo em oração que me conecta com o sentido da expressão hebraica tefillah, cujo significado se impõe para além do de súplica ou rogo e se torna em pensar, julgar, refletir sobre si mesmo. A palavra convertida no ato de orar apropria-se da realidade tal como ela é, possibilitando a ação refletida, fruto do questionamento sobre o mundo. Vale lembrar que a palavra sempre significou poder, o poder daquele que a domina e dela se apropria para dominar a realidade. A palavra é o nosso maior instrumento de reflexão e domínio. Eu sou quando reflito, quando sou a palavra que utilizo para assumir a realidade e repassar a memória e os valores às próximas gerações.

Logo, a palavra oração está no meu cotidiano de orquídeas, mas também no desejo de que as guerras não existam, de que crianças nasçam para serem felizes e sejam garantidas dos seus direitos básicos de proteção, cuidado, alimento, educação, infância e amor…as orquídeas são como festa para o olhar, mas o olhar não se esquece das atrocidades humanas, estas que, por vezes, nos retiram a esperança, anulando a crença de que somos capazes de ultrapassar tempos de muita complexidade política, económica e social… tempos de dor.

Enquanto desencadeio o pensamento, o dia exige pressa. A pressa de quem trabalha e precisa das horas para cumprir seus compromissos. Mas antes de iniciar a jornada, não posso deixar de constelar a palavra oração, do grego maínesthai que significa estar possuído por um deus, com as palavras − criação, transcendência, poesia, consciência, existência, reflexão, ação, intervenção e todos os outros sentidos que favoreçam à vida.

Abri a janela e o cavalo amarelo, que espalha a sua luminosidade, trouxe-me boas novas: duas pequeninas orquídeas desabrocharam e dois meninos, Caio e Pedro, nasceram de uma mesma flor, pela manhã. O nome Caio, derivado do latim Caius – origina-se de Gaius − significa feliz, contente e alegre. O nome Pedro, do hebraico Kefás e do grego Pétrus significa rocha, pedra, firmeza, ordem. As orquídeas são amarelas e trazem a simbólica da luz, do calor, do otimismo, da alegria e da inspiração criativa, tal como explorou o pintor holandês Vincent Van Gogh ao preencher suas telas com os tons de amarelo mais variados e intensos, como se fosse uma epifania.

Hoje, o amanhecer se aproximou do amarelo de Van Gogh e os “acasos significativos” desenharam o meu dia. Segui caminho para ir dar aulas e por mais inusitado que pareça, a constelação semântica não se encerrou à beira da janela. Desci a rua como quem corre pelo campo, esquecida dos prédios, das calçadas, das barreiras…parei no café de sempre. Enquanto bebia o café, chegou-me uma mensagem de algures… talvez de muito longe… de um paraíso perdido, onde alguém engrandece a vida. Passo a citá-la:

Cara amiga, embora não nos conheçamos pessoalmente, leio as tuas crónicas. Trato-te por tu porque conheço as nascentes da tua escrita. Gostaria que escrevesses sobre um tema: o poder da oração. Não te sintas com o compromisso de escrever sobre o que proponho, mas quero dizer-te que, mesmo diante de um mundo difícil, não quero perder a esperança e assim, faço da oração a palavra que me cura. É estranho, mas é certo. A oração me aproxima da minha esperança e traz-me alguma paz. Partilho contigo a minha oração de hoje, na esperança de que outras pessoas possam se recuperar das suas dores e superar os desafios da vida. Acredito na palavra e no seu poder transformador. Assim, pronuncio: Oh, força da criação universal que em tudo é a presença do amor e da vida, agradeço-te por seres a palavra que em mim se expande, como se fosse o sol derramado nos campos de trigo, ou nos montes e planícies onde dançam os alecrins… és em mim, a palavra reverberante – poesia e canção. És o mergulho no mar profundo, de onde trago os corais e azuis… és a palavra que transborda do corpo e voa no infinito das horas e do tempo, salvaguardando a eternidade. Nada sou além da palavra que és em mim. Contigo sou o desejo de ser brisa, céu, monte, rio, mar… Andorinha de asas quebradas que tenta voar. Sou a palavra que me veste e reveste no ritmo da oração. Recriação nos amanhãs. As asas quebradas assumem a forma de esperança e sopra-se o futuro do presente, como se este, fosse aguarela que pinta a pedra, a flor e tudo que verdeja. Ah, se as palavras voassem, elas pousariam no infinito das estrelas, contemplando o mundo. Dizendo: amém. CLP.

Confesso que fiquei surpreendida, mas segui caminho com as palavras pelas mãos. O dia passou ligeiro. Como de costume, à noite, sentei-me para escrever e dialoguei com os acasos e, em oração, iniciei a noite sob a luz das estrelas e de um infinito de palavras que dançavam os seus sentidos de salvação. Eis o poder da oração.

A colheita, Vincent van Gogh,1888. Museu Van Gogh. Fotos Commons Wikimedia.

Oh, força da criação universal, agradeço-te por seres a palavra que em mim se expande, como se fosse o sol derramado nos campos de trigo ou nos montes e planícies onde dançam os alecrins.

Fotos: Girassóis, Vincent van Gogh, 1889; A colheita, Vincent van Gogh,1888. Museu Van Gogh. Fotos Commons Wikimedia.

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