Os pés na água

Na tarde do dia 21 de maio de 1998, o presidente Jorge Sampaio declarava aberta a exposição mundial de Lisboa. Na manhã do dia seguinte, 22 de maio, abriam-se as portas para um evento que haveria de marcar de forma indelével a nossa vida como indivíduos e como sociedade.

A grande exposição contava com 126 pavilhões, albergando 146 países e 14 organizações internacionais. Apesar do que víramos sobre a vizinha exposição universal de Sevilha, em 1992, apesar de muitos portugueses a terem visitado, nunca antes Portugal conhecera um evento de tamanha envergadura, do ponto de vista das estruturas físicas, do investimento e sobretudo da proposta cultural da Expo 98.

Os oceanos, um património para o futuro

Desde aquele 22 de maio até 30 de setembro, 10 128 204 visitantes, 79% dos quais portugueses, fizeram do verão de 1998 uma longa e inesquecível festa. O século (o milénio) preparava o seu fim e, em Portugal, a palavra de ordem era “futuro”.
Ainda hoje nos impressiona a modernidade do tema: os oceanos, um património para o futuro. Três palavras substantivas para pensar a nossa relação com o planeta e com os outros, a casa-comum que é maioritariamente água, e os homens e mulheres com quem, inevitavelmente, partilhamos essa casa, mas também a água, o pão e o destino.

Em 1998, em Lisboa, dez milhões de pessoas viveram um verão intenso com as surpresas, as tradições, alguma loucura, o sol e a chuva, a tenda eterna do pavilhão de Portugal, o Gil e a Docas, o mar utópico do tanque central do Oceanário, o jardim chinês, o tango ao vivo no pavilhão da Argentina, os piqueniques transmontanos à porta do México, os carimbos no passaporte, tantas e tantas recordações que poderíamos recuperar.

Vinte anos depois

Fotos tiradas com uma máquina digital da época (640 x 480 pixels). MSA/Dino.
Fotos tiradas com uma máquina digital da época (640 x 480 pixels). MSA/Dino.

No passado mês de maio, a atenção que os media deram ao aniversário da exposição fez com que também muitos portugueses se voltassem para as suas memórias dessa experiência desencantando souvenirs guardados nas gavetas dos trastes, reabrindo os álbuns de fotografias reveladas em papel brilhante. Aposto que os caríssimos leitores destas linhas também têm esses objetos, essas lembranças.

O que ficou da Expo 98 em termos urbanísticos é tão evidente que às vezes até o esquecemos: o FIL, o Ocenário, o Museu do Conhecimento, o pavilhão de Portugal, as avenidas longas, a toponímia a invocar heróis navegantes, pontos cardeais e sonhos do passado, a Estação do Oriente (que simbólica coincidência aquela que junta um lugar da cidade a um destino nacional), o pavilhão Atlântico (que os patrocinadores vão nomeando alternadamente), o jardim Garcia da Horta, os vulcões de água fresca, as tábuas ondulantes dos bancos de madeira ou as riscas azuis e brancas dos bancos de pedra.

O que ficou da Expo 98 em termos património mental e cultural é quiçá menos palpável, mas igualmente definidor da Lisboa de hoje. António Mega Ferreira, um dos artífices da exposição mundial de Lisboa projetava esse património num vídeo institucional de 1994: pretendia-se que o investimento educativo nacional, a concepção de um projeto para a capital, mas com envolvimento de todo o país viesse a criar “uma geração-expo, que não é nenhum tipo de homem novo, mas é um tipo de mentalidade diferente: mais aberta, mais disponível e mais solidária, como é necessário para enfrentar os grandes combates que nos esperam no século XXI”.

Caminhar sobre a água é possível

A autora com os pés na água, em junho de 1998.
A autora com os pés na água, em junho de 1998.

Neste século XXI que já é plenamente o nosso, continuamos a olhar para as conquistas como “uma espécie de milagre”, no encadeamento dos milagres que constituem a história de Portugal – assim reflete Eduardo Lourenço em entrevista a José Bastos, da Rádio Renascença, a propósito da vitória no europeu de futebol em França, em 2016. Milagre e mistério, podemos ler na citada entrevista, são parte da construção da identidade nacional. Todavia, o maior mistério, diz o Professor, é como depois de quase mil anos, Portugal “é ainda sujeito do seu próprio destino”.

A história já é mítica: em 1989, à mesa do restaurante Martinho da Arcada, colegas da Comissão dos Descobrimentos, os intelectuais Mega Ferreira e Vasco Graça Moura ousaram pensar numa grande exposição mundial em Lisboa sobre os mares e os oceanos vistos do passado, mas como lugar de futuro. Da ideia de dois homens, ao trabalho de milhares e à festa de milhões de pessoas foi, sem dúvida, um caminho que se fez com os pés na água.

Sabemo-lo bem: caminhar sobre a água também é possível.

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