Um verbo acessível a todos, da varanda do apartamento às hortas urbanas passando pelos espaços rurais, jardinar é uma atividade tão antiga quanto o ser humano, a ponto de ser um mapa para compreender as alianças que constituem a nossa história…
Adelaide Miranda e Rui Pedro Vasconcelos
II – Uma poética bíblica do jardim

A linguagem bíblica gosta de trabalhar com símbolos, com metáforas ou imagens que povoam o imaginário de quem lê e de quem escuta. Quem não encontra na sua memória, fechando os olhos, a imagem de um jardim primitivo, seja o de um paraíso primordial, seja o de uma casa de infância na aldeia, seja o de um parque perto da escola, na cidade?
São imagens que suscitam sentimentos ou emoções de saudade ou nostalgia de lugares que já não existem ou aos quais já não se regressa, de enlevo pela beleza de que se desfrutava, de confiança por tudo nos ser dado e apresentado, sem nada nos exigir em troca…
O crente que, debruçado na Bíblia ou escutando-a no seu espaço familiar ou celebrativo, escute a palavra jardim será transportado para esse mundo mágico de beleza, mas também de perda (perda da etapa da infância, ficando as memórias), de maravilhamento, mas também de sofrimento (da perspetiva do trabalho e da luta pelo alimento).
Há verbos que, paradoxalmente, têm uma conotação mais passiva do que ativa: ao contrário, por exemplo, do verbo cultivar e de toda a sua envolvência agrícola, o verbo jardinar trabalha não só, em muitas situações, com elementos que já existem e que a natureza proporciona, como não tem, na maioria das vezes, uma finalidade de produção ou de lucro. Um jardim sacia, mas não sacia o ventre. Talvez seja, por isso, um espaço de lazer, de desfrute ou de contemplação, ao passo que a horta ou o campo são os espaços da necessidade e do trabalho.
Na Bíblia surge-nos, à primeira vista, um paradoxo: os jardins não são, normalmente, criados por mão humana. Ou, pelo menos, tal criação não é narrada. Ao contrário das sementeiras e das colheitas, do comércio, da pastorícia ou da edificação de vinhas, nos jardins bíblicos as personagens são introduzidas ou apresentadas.
Tais personagens assemelham-se um pouco a crianças que encontram um mundo já constituído e nele procuram habitar, criando interações rituais com os diversos objetos existentes segundo dinâmicas de investimento. Talvez por isso a imagem de um jardim no qual a água brote em abundância seja a imagem da Terra Prometida ou do Reino dos Céus, para um povo que, na sua origem, tem a matriz das tribos nómadas do deserto.
A esta beleza, os textos bíblicos associaram – um facto comum à pluralidade das culturas, quer no tempo bíblico, quer no nosso – ao espaço do jardim a experiência da relação amorosa, conjugal ou de noivado: o jardim como espaço de encontro ou de enamoramento é algo comum também aos nossos dias. O verbo jardinar torna-se assim, paradoxalmente, sinónimo do verbo amar. O mistério do amor humano tem lugar nas páginas bíblicas e é por estas elevado a símbolo da relação de Deus com o seu povo: talvez por isso, pela presença tão humana nestas páginas, se explique o porquê do nosso afastamento delas.
No jardim da Páscoa
No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã, ainda escuro, e viu retirada a pedra que o tapava. (…) Junto ao túmulo, da parte de fora, Maria estava a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo, e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. Perguntaram-lhe: “Mulher, porque choras?” E ela respondeu: “Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram”.
Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta que era Ele. E Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: “Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo”. Disse-lhe Jesus: “Maria!” Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: “Rabbuni!” – que quer dizer: “Mestre!” Jesus disse-lhe: “Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: ‘Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus.’” Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: “Vi o Senhor!” E contou o que Ele lhe tinhadito. (Jo 20, 1.11-18)
Comecemos, desta vez, pelo final: pelo Novo Testamento. Afinal ele é, para a grande maioria de nós, a porta de entrada, o primeiro anúncio da fé, a que depois se seguirá – se a vida assim o permitir e convidar – a descoberta do Primeiro Testamento.
É, de facto, aqui que tudo começa, no anúncio ou testemunho que escutamos, de que o Senhor ressuscitou. O Evangelho de João tem a particularidade de situar num jardim o lugar da crucifixão de Jesus e o sepulcro onde o seu corpo é depositado. A tal ponto que Maria Madalena, a discípula, confunde o Ressuscitado com o jardineiro, num jogo de equívocos muito comum no Evangelho de João: numa asserção aparentemente equivocada ou mal-intencionada, a personagem diz uma verdade acerca de Jesus.
Ele é, de facto, o Jardineiro, ainda que a discípula não o compreenda de imediato em toda a sua verdade: o Ressuscitado é o Senhor da vida e da morte, do espaço em tudo o que de pior o ser humano pode fazer, e do mesmo espaço onde a vida divina pode brotar; é o Senhor que converte da morte para a vida não só o tempo, mas também o espaço.
Uma literatura de tipo mais sensacionalista aponta a hipótese de um romance entre Jesus e Maria Madalena, equivocadamente confundida na tradição com a personagem feminina de Lc 7, 36-50 que ungiu, perdoada, os pés de Jesus. As fontes históricas não transmitem qualquer indício desta hipótese, não tendo havido, por outro lado, motivos para a ocultar (na tradição profética e rabínica de Israel o celibato era comum, mas não era a regra).
Mas há uma verdade de fundo que o Evangelho de João convida a contemplar ao longo das suas páginas, desde as Bodas de Caná até ao relato do Lava-pés, do encontro com Maria Madalena até à tripla confissão de Pedro (“Pedro, tu amas-me?”): o encontro com o Ressuscitado é também um caminho afetivo que envolve uma busca e uma perda, um desejo e um encontro.
Uma história de aliança – e ser discípula ou discípulo de Jesus é viver também uma história de aliança – é um contínuo processo de reconhecimento do Outro, sempre diferente e sempre um mistério. Quando, neste belíssimo relato, Maria vive um caminho de perda, de desencontro e de reencontro, está na verdade a contar a história de qualquer discípulo. Porque é nos caminhos e desencontros, nas perdas e buscas, no desejo de abraçar e na necessidade de deixar partir que qualquer um de nós constrói o jardim das suas relações, da sua família, das suas amizades e da sua vida de aliança.
E é nesse jardim, não fora, que o Ressuscitado escreve uma história com cada um dos seus discípulos.

No jardim do Cântico dos Cânticos
Aonde foi o teu amado,
ó mais bela das mulheres?
Aonde foi o teu amado?
E nós o buscaremos contigo.
O meu amado desceu ao seu jardim,
ao canteiro dos aromas,
para apascentar nos jardins
e para colher lírios.
Eu sou para o meu amado
e o meu amado é para mim,
ele é o pastor entre os lírios.
(Ct 6, 1-3)
No final do primeiro século da era cristã, quando as comunidades dos discípulos de Jesus se multiplicavam no mundo mediterrânico, uma assembleia rabínica de Israel declarava solenemente que o livro do Cântico dos Cânticos fazia parte integrante das Escrituras, definindo a sua leitura na celebração do dia de Páscoa. Facto paradoxal para um livro bíblico onde só por uma vez é enunciado o nome de Deus, mas que canta os encontros e desencontros do amor humano.
Terá sido, certamente, um dos livros bíblicos mais comentados ao longo da tradição cristã, desde Orígenes (século III) até Bernardo de Claraval, na Idade Média, chegando a Teresa de Ávila (o seu confessor ordenou a Teresa que destruísse o manuscrito dos seus Pensamentos sobre o Amor de Deus, o que a santa cumpriu; felizmente, uma outra versão, mais reduzida, chegou até nós).

O Cântico dos Cânticos é um livro breve, de oito capítulos, que podemos encontrar nas nossas Bíblias no conjunto dos escritos sapienciais. O jardim é uma metáfora ou mapa de buscas, desencontros e reencontros entre dois amantes. Quer a tradição judaica, quer a tradição cristã reconheceram no diálogo de amor humano uma densidade e abertura divinas.
Também os profetas de Israel utilizarão a linguagem amorosa (com a sua beleza, mas também com os seus dramas, com as suas alegrias mas também com as suas perdas) para narrar a Aliança de Deus com Israel, tradição que chegará ao Novo Testamento e à relação de Cristo com a Igreja.
O jardim surge, no Cântico dos Cânticos, como um lugar já estabelecido, um espaço ou cenário onde, como num sonho, as personagens são introduzidas e o preenchem com os seus desejos e aspirações. A leitora e o leitor que tiverem a generosidade de percorrer este Cântico encontrarão elementos naturais, seres da criação e ambientes citadinos, ambientes nos quais qualquer relação de aliança tem de conviver. Nuns momentos serão elementos de proteção e cuidado a essa aliança, noutros serão elementos de controlo e de dificuldades. Não existe o amor em estado puro ou idílico: existe apenas nas circunstâncias, jardins ou cidades que cada um habita, com as suas possibilidades e condicionantes.
“Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor”, diz o Cântico (Ct 8, 6); e o Novo Testamento dirá: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4, 7-8).
Frases fortes, densas, que nos transportam para o coração da aliança bíblica, transpondo as camadas moralistas com que sobrecarregamos esta história de salvação. Na linguagem pura e cristalina – ainda que pouco tranquila! – do Cântico, capaz de ferir os nossos ouvidos porque isenta de qualquer moralização, a tradição espiritual judaica e cristã reconheceu a narrativa de Deus com o seu povo. Exemplo que conduz o crente, para lá de todas as sobrecargas moralizantes, ao lugar – ao jardim – da sua história de aliança. Trabalho exigente e fecundo.
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