Sibéria: A Luta de Abel com Caim dentro dele

Como escrever sobre um filme que nos parece importante, mas nem sequer foi daqueles que mais nos entusiasmou? E no entanto, parece ‘obrigatório’ escrever sobre ele, o último filme de Abel Ferrara, com o seu alter-ego e crítico Willem Dafoe: Sibéria.

Para me justificar, começo por três citações retiradas de críticas que fui encontrando. Espero que sejam uma porta para entrar no labirinto interior daquele homem atormentado que enche a tela.

O cristianismo estrutural de Ferrara:

Nos deslocamentos de Clint sempre reaparece o crucifixo, símbolo máximo do cristianismo. A lembrar que alguém sofreu e morreu por nós e que, por mais que façamos, jamais estaremos à altura desse sacrifício. Como a dizer que quem é formado dentro do catolicismo traz esse núcleo duro dentro de si, de maneira irremediável. Pode não ir à missa, nem se confessar e comungar. Pode renegar a crença e dizer-se ateu. Mas traz em si a culpa primordial como cicatriz indelével, parte de sua estrutura mental e moral. Enfim, é um cinema atormentado por esse tipo de pergunta religiosa: o que é o ser humano? Qual a sua missão? Qual o sentido de sua presença na Terra? Por que existe o mal se Deus é bondade? Como explicar a culpa se já nascemos sob o signo do pecado original? (Estadão)
Se um dia eu encontrasse Abel Ferrara não seria para lhe perguntar sobre os seus filmes, mas sobre como ele se relaciona com os romances de Georges Bernanos. São dois homens muito parecidos (embora muito diferentes). Mas ‘Sibéria’, o novo filme de Ferrara, me fez lembrar muito ‘Sob o Sol de Satã’, em que um padre, quanto mais é perfeito em sua devoção a Deus, mais – e por isso mesmo – é perseguido pelo demónio. (Folha)
Há muitos lugares onde é possível se perder, mas talvez o mais profundo e remoto deles seja dentro de si mesmo. ‘Sibéria’ é uma viagem lisérgica (nota: tem a ver com alucinogénios e alucinações) que pede muito ao espectador, mas que recompensa em igual medida. (cineset)

Siberia de Abel Ferrara, Drama/Terror, M/16, MEX/GRE/ITA/ALE, 2020.
Siberia de Abel Ferrara, Drama/Terror, M/16, MEX/GRE/ITA/ALE, 2020.

O filme é uma espécie de viagem interior, no deserto de neve, mas também no deserto de areia, à procura da redenção. Carregado de simbolismos, o filme – algumas vezes de modo grotesco – vai fazendo passar diante dos nossos olhos todos esses fantasmas e lutas interiores. A começar pelo pai, na acepção mais freudiana que possa imaginar-se, pela sexualidade, pela maldade – como se tudo fosse um enorme pesadelo. Depois de uma longa viagem na imensidão da neve, Clint vai ter a uma caverna onde tem de enfrentar os seus ‘demónios’. Por isso, a palavra expiação, tendo em conta essa marca católica assente na questão do(s) pecado(s), não estará deslocada e pode fazer alguma luz num filme tão escuro, apesar da brancura da neve.

Segundo rezam as crónicas, o filme, que muitos associam aos onirismos e psicanálise felliniana, foi recebido com irritação por uns e com entusiasmo por outros. Não é um filme fácil, tantas são as suas camadas, às vezes sem relação aparente entre elas. Mas é um combate: do próprio realizador, do magnífico Dafoe no papel de Clint, do espectador com aquele objecto estranho e fragmentário a precisar de muito tempo para ser visto e ouvido. A música também desempenha um papel decisivo.

Sibéria podia ser descrito como uma jornada metafísica ao âmago de um homem em busca de paz de espírito” (Expresso). Afinal, talvez valha mesmo a pena correr o risco de enfrentar esta estranheza tão livre e assustadora de Ferrara e Dafoe.

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