Não será demasiado arrojada a afirmação que define historicamente a temática da revelação no contexto da teologia moderna e contemporânea.
Com efeito, os nós mais intrincados desta problemática surgem, fundamentalmente, a partir do século XVI, que além do mais caminharão a par da progressiva construção da apologética tradicional na sua tripla demonstração: religiosa, cristã e católica.
Na verdade, até à necessidade sentida de responder aos desafios levantados por aqueles que se constituíram em adversários da argumentação apologética (protestantes, deístas e ateus), não há propriamente preocupação teológica específica com a temática da revelação, quanto à sua natureza e propriedades.
A comunidade é portadora e transmissora da revelação de Deus

O que parece haver – principalmente durante os primeiros séculos – é uma auto-consciência da comunidade cristã como portadora e transmissora da revelação de Deus à humanidade.
Ou, talvez, melhor dito assim: a auto-consciência da comunidade cristã, que se crê portadora e transmissora da revelação de Deus à humanidade, decorre primariamente de uma experiência viva e em movimento, o que implicará, como consequência do anúncio, a necessidade da sua tradução cultural.
Contudo, durante o processo de cristalização escriturística do próprio corpo neotestamentário, há uma outra tensão que corresponde a um movimento hermenêutico. Trata-se fundamentalmente de uma releitura daquele corpo que era entendido, por antonomásia, como Escritura: a Lei e os Profetas.
Só com a maturação da interpretação do anúncio apostólico, que tudo relê à luz do evento Cristo, se irá paulatinamente constituindo a Escritura, compreendida na sua unidade vetero e neotestamentária. Do que se trata, então, é de uma leitura infinita – para utilizar o título de Tolentino Mendonça – na base da construção estrutural da própria Escritura, como tradução histórico-cultural de uma experiência de revelação divina.
A toda a Escritura , quer do Novo quer do Antigo Testamento, subjaz uma experiência real
O que interessa, porém, é que a esse processo de cristalização escriturística, quer do Novo quer do Antigo Testamento, que supõe uma dinâmica de narração e interpretação, subjaz-lhe uma experiência real:
A fé de Israel expressa no Antigo Testamento fundava-se sobre a experiência dos prodígios operados por Deus na história do povo hebreu. A fé dos primeiros crentes cristãos tinha como fundamento a simples narração da vida, obras, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Não se tratava de uma simples narrativa impessoal, mas provinha de uma íntima experiência dos factos constituintes da alma do kerygma; com efeito, os Evangelhos não são um puro relatório, mas a interpretação de uma experiência: chamamos-lhe uma haggada cristã.
[P. Grech]
A experiência comunica-se através da linguagem

Contudo, adverte P. Grech, “uma experiência é algo de pré-conceptual e deve ser traduzida em linguagem para ser comunicada”. Não são de estranhar, por isso, as ressonâncias veterotestamentárias, os ecos das interpretações rabínicas, do judaísmo helenístico ou, até mesmo, da cultura grega contemporânea, que acabam por ser integrados na cristalização do próprio Novo Testamento.
No que à reflexão teológica diz respeito, é importante sublinhar que esta se trata fundamentalmente de uma inteligência da fé que se constrói, sobretudo, na referência a uma escuta da fé – auditus fidei e intellectus fidei.
Porém, são já suficientes os elementos que a exegese e a crítica bíblica nos oferecem para percebermos que a escuta da fé é já, em si mesma, uma inteligência da fé.
Na encruzilhada da experiência da escuta e da dinâmica da interpretação contextualmente situada
A revelação acontece, portanto, nessa encruzilhada que se dá entre a experiência da escuta e da sua dinâmica interpretação contextualmente situada. E se é verdade que “a teologia é intellectus fidei, esforço por compreender a fé cuja norma está na Escritura” [S. Silva], é fundamental também perceber que essa norma inspira também o método dessa inteligência da fé:
[…] também o Novo Testamento é uma foto instantânea de um corpo em movimento, que assinala quer a direção quer a metodologia da investigação teológica hodierna. Quem diz que os manuais teológicos são a sepultura da teologia não está completamente enganado. […] a teologia é algo vivo, praticada constantemente por toda a Igreja, fruto de um contínuo diálogo interno entre a fé, a razão, a santidade, a oração, a piedade, o ensinamento apostólico e o confronto com a história. Assim ao início, assim agora.
[P. Grech]
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