Viver e testemunhar Deus na vida

O lugar para dizer e visibilizar o mistério de Deus é a vida.

A afirmação com que começo esta partilha traduz uma dimensão que considero ser absolutamente essencial no cristianismo e para a qual já tenho várias vezes chamado a atenção nestas páginas.

Volto a ela mais uma vez, por me parecer reconhecer sinais crescentes que a procuram colocar em causa. Com ela quero destacar como a experiência cristã não pode nunca deixar de ser uma experiência teoprática, ou, se quisermos dizer de outro modo, como o encontro do ser humano com Deus passa definitivamente pela experiência da vida. Certamente pela experiência da vida testemunhada por Jesus, pois é nele que temos acesso ao Mistério do Pai, mas também pela vida de cada um de nós. E é, sobretudo, este último aspeto que aqui me interessa destacar.

Tem sido frequente entre muitos cristãos a ideia de que o encontro do ser humano com Deus só pode continuar a acontecer na medida em que sejamos capazes de repetir cultualmente determinado tipo de gestos religiosos.

Infelizmente, tem sido frequente entre muitos cristãos a ideia de que o encontro do ser humano com Deus só pode continuar a acontecer na medida em que sejamos capazes de repetir cultualmente determinado tipo de gestos religiosos, o que no contexto desta reflexão significaria repetir unicamente os mesmos gestos de Jesus. Como é óbvio, não pretendo minimizar de modo nenhum a importância da vida concreta de Jesus. Pelo contrário, comecei mesmo por afirmá-la

Mas ser cristão não se pode reduzir jamais a uma simples imitação de gestos, mesmo que sejam os de Jesus. Para sê-lo é preciso muito mais, é preciso perceber a raiz da experiência de vida de Jesus Cristo, o seu princípio existencial, para o poder assumir. Só assim, poderemos perceber que para o cristianismo o encontro com Deus não pode acontecer à margem da vida, tendo mesmo de acontecer no meio dela. Deste modo, a vida humana faz-se reveladora de Deus e facilitadora (ou não) desse mesmo encontro.

Dito isto, julgo ser mais facilmente compreensível o facto da experiência concreta da vida de cada pessoa ser mediação indispensável para se poder dizer e visibilizar o Mistério que a habita. Com isto, não quero afirmar que a vida concreta de cada pessoa seja a única mediação possível. Estou bem consciente de que assim não é, pois, a experiência cristã comporta também uma dimensão comunitária indispensável e insubstituível. Mas não sendo a única mediação possível ela é indispensável, insisto, não podendo ser ignorada, nem secundarizada.

Daqui decorre que a experiência cristã não pode ser vivida na nossa sociedade e na nossa cultura, partindo de pressupostos e conceitos que não sejam os nossos, construindo uma história que não seja a nossa, vivendo uma vida que passe ao lado da nossa própria vida.

Neste sentido, o percurso da história demonstra que quando a teologia trabalhou com um logos anacrónico em relação à experiência histórica se esgotou como tal, convertendo-se numa linguagem ininteligível e insignificante, arrastando, na sua própria decadência, a fé e dando lugar a grandes crises religiosas.

A descoberta do valor teológico da experiência da vida ajuda-nos a entender também a importância das dimensões ética e política dessa existência. Na verdade, mesmo que para alguns isso possa parecer estranho, também elas me parecem ser mediação indispensável para viver o encontro com o Mistério de Deus.

Sinceramente não me parece ser possível entender a experiência cristã completamente desligada de uma intervenção na sociedade e na cultura em que vivemos. Claro que não se trata de uma intervenção no sentido de obrigar tudo e todos a fazerem a opção cristã, trata-se, isso sim, de ser testemunho daquilo em que acreditamos, da proposta de Deus para a humanidade, uma proposta que para nós é motivo de profunda felicidade e realização (salvação).

Por isso, alguém que se mostre insensível às manifestações de ‘morte’ do ser humano, tais como são o sofrimento evitável, as condições de injustiça, a vida pobre a que tantos são condenados e tantas e tantas outras situações em que a dignidade humana é atingida, jamais se poderá assumir como cristão. A luta pela justiça e pela dignidade do ser humano, de todos os seres humanos, tem de ser uma das notas características da opção cristã aqui e agora.

Levar a vida a sério, comprometendo-nos com ela no momento histórico que nos é dado viver, procurando transformar essa mesma vida e essa mesma história à luz do Evangelho, parece-me ser caminho indispensável de fidelidade cristã.

Foto da capa: Manuela Silva (1932-2019) economista, professora universitária, fundadora da Rede Cuidar da Casa Comum, cidadã empenhada em contribuir para uma economia ao serviço das pessoas e um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo.
Na foto Manuela Silva e Frei Paulo Fappani, num encontro de formação no Convento Franciscano de São Maximiliano Kolbe. Foto MSA, Lisboa, 5 de maio de 2018.

Related Images:

%d