Páscoa: da vida desfigurada à vida transfigurada

 

A Quaresma inicia-se com um rito em que assumimos o realismo da nossa poeira original: “Lembra-te que és pó”. Gravado na nossa fronte com cinza, este ritual regista a situação a partir da qual avançamos até à Páscoa.

Para testemunhar que Cristo ressuscitou, os evangelistas jogam com a polissemia do verbo grego egheiro, que tanto significa “ressuscitar” como “levantar”, “erguer” ou «acordar». São palavras que usamos na vida corrente para exprimir o que acontece, quando saímos do nosso torpor e nos tornamos um pouco mais vivos. Aquilo que parece esgotado de uma maneira inexorável nas nossas histórias pessoais pode encontrar um novo impulso de vida: um fracasso pode dar ocasião a um novo recomeço, prelúdio de diferentes possíveis. Não obstante aquilo que torna mortal o nosso quotidiano, quando o caos se inscreve na nossa vida, sempre podemos reerguer-nos, se nos deixarmos contagiar pela presença de Cristo Ressuscitado.

O que torna a Páscoa sobrenaturalmente atuante continua a estar hoje visível em histórias pessoais transfiguradas, quando parecia que elas estavam esgotadas de uma maneira inexorável. Aqui fica o testemunho de um caminho “pascal” de duas vidas, depois de terem sido tocadas pelo Espírito.

De assassino a asceta

O primeiro é o de um cidadão francês, Jacques Fesch. Depois de ter assassinado um polícia, ao ver-se acossado, na altura em que estava a roubar uma enorme fortuna num banco, acabou por ser condenado à morte. Durante o tempo em que esteve na prisão, antes de ter sido executada a sentença do tribunal, viveu uma fulgurante conversão, que faz lembrar a de Paulo de Tarso no caminho de Damasco. Veja-se este seu testemunho, publicado postumamente:

Depois de um ano de detenção, fui acometido por uma dor afetiva, que me fez sofrer imenso. Fui possuído pela fé, de uma forma impetuosa. Quando a graça me visitou, uma enorme alegria e uma grande paz tomaram conta de mim. Tudo se tornou claro num instante.

Este que tinha sido um assassino converte-se subitamente num asceta e passa os seus dias em oração. Antes de subir ao cadafalso em que foi executado, no dia 1 de Outubro de 1957, pôs por escrito esta sua última vontade:

Que o meu sangue, que vai correr, possa ser aceite por Deus como um sacrifício inteiro e que cada gota sirva para apagar um pecado mortal.

Em 1993, o cardeal Lustiger, arcebispo de Paris, promove a causa da sua beatificação, assim fundamentada:

Nunca ninguém está perdido aos olhos de Deus, mesmo quando é socialmente condenado. Espero que um dia, Jacques Fesch seja venerado como uma figura de santidade. O assassino que foi, o criminoso arrependido, tornou-se um santo.

De corpo objeto a corpo dançante

O segundo caso é o de Sophie Galitzine, uma dançarina francesa. Nascida em 1978, teve uma infância dourada em Paris, mas veio depois a enveredar por um “comportamento de risco”, assim resumido por si: “fumava, envolvia-me em relações amorosas…mantive com o meu corpo uma relação de objecto a objeto”. Depois de se ter convertido, dez anos mais tarde, passa a sentir no corpo a sua relação íntima com Deus, assim relatada nesta surpreendente confissão:

Tive a impressão de que o Senhor, pela Eucaristia, reorientava fisicamente as minhas células. Era a real restauração do meu corpo. O corpo é agora para mim uma manifestação divina, este meu corpo é a minha alma que se torna visível. É por esta razão que hoje experimento o desejo de estabelecer uma ponte entre a dança e a religião cristã.

Em obediência a este desejo, criou um espetáculo performativo inspirado no Cântico dos Cânticos, com esta justificação:

Tinha necessidade de falar de Deus. Não podia deixar de fazer isso, a partir da história que eu tinha vivido. Era qualquer coisa que me ultrapassava.

As aparições do Ressuscitado continuam

O Ressuscitado continua a fazer as suas aparições, de forma imprevista, nos estreitos atalhos da vida, bem dissemelhantes das largas auto-estradas do pensamento conveniente. Cristo pascal obriga-nos a sair dos clichés pré-fabricados, a que recorremos para nos proteger das nossas inseguranças, sem darmos conta que esses preconceitos nos põem longe da vida real. Este fechamento reativo impede-nos de abraçar sem medo as experiências de encontro pró-ativo. Como podemos acreditar que Cristo está vivo sem o vermos no rosto dos excluídos? Como podemos amá-lo, sem nos fazermos próximos daqueles que trazem na sua carne as feridas da injustiça e da violência?

A Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo

A Igreja deve ser uma luz que acompanha as pessoas na sua vida real, em vez de ser um farol estático que se mantém num lugar seguro, mas sempre à distância. Foi o que lembrou o Papa, ao agradecer ao Pe. Tolentino Mendonça o retiro que este lhe tinha pregado:

Obrigado por nos lembrar que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito também voa e trabalha fora dela (…) Com as citações e com as coisas que nos contou, mostrou-nos como ele [o Espírito Santo] trabalha nos não crentes, nos pagãos e em pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o Espírito de Deus e é para todos.

A fragilidade tornou-se lugar de redenção

É importante que os cristãos escutem e aprendam com as perguntas daqueles que não crêem. Servir-se da religião para rotular uns como eleitos e outros como perdidos é fazer de Deus um conforto para os piedosos e uma humilhação para os que são catalogados de pecadores. Se cultivarmos a posição de que Deus se retirou deste mundo porque este mundo é mau, acharemos que a Igreja também se deve retirar dele, para não se manchar e para se manter pura. Ao contrário desta fixação autorreferencial, a Páscoa mergulha-nos num futuro inesperado, à semelhança do que aconteceu às testemunhas que acorreram ao sepulcro e o encontraram vazio.

Cristo ressuscitado continua a franquear as portas fechadas dos corações atemorizados, para os transformar em terreno fecundo de uma confiança redimida. A luz da manhã de Páscoa faz-nos ver a frágil vida humana elevada à incandescência divina. Essa radiosa madrugada continua a irradiar sobre a nossa poeira efémera a glória perene da Ressurreição. Por força deste banho de Espírito Santo que nos embebe de vida divina, o Padre António Vieira no seu Sermão de Quarta-feira de Cinzas, define deste modo a nossa identidade: Somos “pó caído que há de ser pó levantado”.

A alegria pascal brota desta assombrosa boa notícia: a fragilidade da nossa natureza tornou-se lugar de redenção.

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