Dedicação

Dedicação: “Desprendimento de si em favor de outrem ou de alguma ideia. Consagração. Devoção”.

Ia com a irmã, os primos e outra miudagem do lugar, à missa de domingo, na igreja situada no cimo do monte. Ainda lá estão todos: a igreja, o monte e ela. Pedra, chão e memória daquela menina que nunca deixou de ser. Sem romancear o passado, pura biografia.

Subia a encosta por uma estrada de terra batida a serpentear o monte, e ela serpenteava também para espreitar a suspeita de alguma lebre ou o cão que ladrava num quintal; arranhava as pernas nas silvas a troco do prémio morno e doce das amoras apanhadas na berma. No tempo das amoras fazia muito calor, mas subir a encosta longa e íngreme que ainda lá está, agora asfaltada, não parecia assim tão difícil. As pernas eram curtas, mas os anos também e subir, ao sol ou ao frio, era apenas o meio de lá chegar.

Na igreja em cima do monte, no final da serpente de terra batida, havia a missa e a doutrina. O que se lembra dos sermões do prior é qualquer coisa com um vago cheiro antigo; vistas pelos olhos de hoje, a menina Piedade e a dona Manuela, que dividiam os dois grupos da doutrina, são uma lembrança de padres nossos e salve rainhas, os passos do Senhor, o rosário da Senhora, os pastorinhos e os preceitos da santa Igreja católica.

A vida levou-a para longe dali, algum romance, pura biografia. Aquela menina que nunca deixou de ser veio para a cidade, com a igreja a três passos de casa, entre o supermercado e o café.

A biografia cresceu, como as pernas, como os anos, e tem muitas histórias que contar, uma agenda cheia e um coração ocupado com os afazeres de uma existência feliz: filhos, marido, amigos, colegas de trabalho, os vizinhos, os outros pais da escola…

É uma mulher do mundo, diríamos, ela decide, organiza, viaja, partilha, brinda, lê, ri-se, sonha, é gira e tem pinta. A agenda cheia, o coração ocupado, e ainda assim a agenda e o coração com espaço para mais um – apontamento ou pessoa, obrigação ou devoção, tudo junto no mesmo sentido de entrega, que não é sem sacrifício, mas é certamente sem fazer do sacrifício o centro.

No centro está um caminho. Não há amoras silvestres, mas há outras silvas e outro fruto que colher, o prémio morno e doce que hoje recorda à catequista aquela encosta, a igreja, o monte e aquela menina que nunca deixou de ser.

A doutrina chama-se catequese e ela continua a serpentear a estrada.

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