Nota da Redação: Este artigo foi escrito antes da Conferência de Imprensa da CEP – Conferência Episcopal Portuguesa, do dia 3 de março 2023.
Tinha pensado dedicar o texto deste mês a uma reflexão sobre a Quaresma, dando eco à mensagem que o papa Francisco dirige a todos os cristãos nesta ocasião.
Depois de ouvir com atenção a apresentação do Relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa e, sobretudo, depois ter lido uma parte substantiva do mesmo, sinto-me dividido. Por um lado, quero expressar a perplexidade, a tristeza, a mágoa e a vergonha pelo que ouvi e li, por outro, sei da necessidade de amadurecer a reflexão para que a resposta não seja essencialmente marcada pela emoção, se bem que não possa também deixar de o ser, pois o assunto em causa interpela-nos profundamente.
As palavras que acabo de usar não são nada meigas, mas expressam bem o que sinto no coração. A comunidade eclesial é para mim pátria e lar. Nela cresci e fui edificando a minha identidade, nela aprendi a olhar o mundo, nela descobri a importância do Evangelho para ousar conceber a existência a partir de um horizonte mais vasto.
O que está a acontecer não põe em causa nada disto, mas não deixa de me entristecer profundamente. E não consigo resolver a questão pensando que esta terrível situação é o resultado do pecado dos seus membros e não tanto da instituição. Não tenho dúvida que o seja, mas também não posso deixar de reconhecer que no seu seio existem estruturas pecaminosas.
Continuo consciente da dureza destas palavras, mas, apesar disso, não posso deixar de as usar. Não acredito que na Igreja haja uma estrutura (ou cultura como outros lhe chamam) sistémica de abusos, mas reconheço a existência de uma cultura sistémica de encobrimento dos abusos.

Não acredito que na Igreja haja uma estrutura sistémica de abusos, mas reconheço a existência de uma cultura sistémica de encobrimento dos abusos.
Com a pretensa ideia de proteger a instituição invisibilizaram-se as vítimas cometendo sobre elas um redobrado abuso. E digo pretensa ideia, pois o encobrimento o que fez, foi permitir a sua própria consolidação como estrutura sistémica, acabando, pois, por não proteger em nada a instituição. Temos dito sempre com muita veemência e clareza que o mais importante são as pessoas, que elas, cada uma delas, são o destinatário privilegiado do amor e da ternura de Deus. Como é possível que isso não tenha também sido claro nesta situação?
Precisamos de tentar compreender o melhor possível todas as dinâmicas e situações que contribuíram para esta realidade. Não para a justificar, nem para a tornar mais aceitável, e é preciso ter consciência de que isso pode ser mesmo uma tentação, mas para a denunciar sem qualquer tipo de dúvida e a combater com toda a transparência e vontade.
E agora? Foi a pergunta que ecoou e continua a ecoar com força nos nossos ouvidos e corações.
Agora é o tempo de olhar para as vítimas colocando-as no centro, que é o lugar que sempre deveriam ter ocupado.
Agora é tempo de reconhecer, com verdade, humildade e tristeza, o mal feito e provocado.
Agora é o tempo de assumir as consequências, promovendo e facilitando o trabalho da justiça.
Agora é o tempo de pedir perdão, sabendo que para isso não bastam as palavras, por mais necessárias, indispensáveis e sinceras que possam ser.
Agora é o tempo de fazer diferente, tendo como critério a missão que decorre do Evangelho e não uma pretensa defesa da instituição.
Por tudo isto, agora é também o tempo oportuno para a penitência, não só individualmente, mas como comunidade. Sim, e não tenhamos medo de o reconhecer, pois esta realidade acaba por impactar todos os batizados enquanto membros da comunidade eclesial.
Na mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma podemos ler:
O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e realiza-se pela graça do seu mistério pascal Para que, neste ano, se possa realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas “veredas” que é necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta.
Essas duas veredas, concretiza o Papa, passam pela escuta de Jesus e pelo não se refugiar numa religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições.
O mal provocado exige uma longa e séria penitência, não para nos paralisar, mas para nos fortalecer na procura da necessária transfiguração pessoal e comunitária. Agora é o tempo oportuno para, sinodalmente, percorrermos este caminho e juntos fazermos o exercício da escuta do Ressuscitado, ousando com ele a edificação de uma instituição eclesial diferente.
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