Frei Luciano Bertazzo
Fernando de Lisboa – António de Pádua: a sua história, depois de 800 anos, continua a chegar-nos com uma surpreendente vitalidade e relevância, sendo um ponto de referência de uma devoção universal que caracteriza particularmente o fenómeno da “devoção popular” que, após um período de suspeita teológica, redescobriu plenamente a sua identidade na valorização feita pelo Papa Francisco (perito conhecedor do valor do “povo”), recuperando o que Paulo VI já tinha pensado na proposta de “evangelizar e deixar-se evangelizar pela piedade popular”.
António, o Frade: foi amplamente apresentado também na sua dimensão histórica, graças a estudos aprofundados que o recolocaram na sua identidade, até se tornar uma “figura chave” para compreender a história franciscana das origens. António, o Santo, uma personagem “bilateral”, quase “bipolar”: o Santo António da devoção popular e o Frei António da história, dois caminhos paralelos que raramente se cruzam, mas que falam da mesma personagem.
Mas quem é Fernando de Lisboa, que se tornou António de Pádua? Precisamente nesta passagem é que podemos encontrar a resposta da sua identidade. Podemos identificá-la em duas palavras: inquietação e paixão.
Inquietação evangélica. É a atmosfera que se respirava no mundo cristão do seu tempo. Um mundo em mudança: a busca de novos caminhos, de novas maneiras de viver o evangelho de forma radical, sem acomodamentos com a riqueza e o poder.
Já não era suficiente o espaço do mosteiro, como garantia de salvação e antecipação da “Jerusalém celeste”; começam a abrir-se novos espaços, os da cidade, do comércio, da itinerância.
Um jovem de Assis, Francisco, não menos inquieto e que procurava a verdade sobre si mesmo, tinha tentado, como outros, novos caminhos, fascinando com o seu projecto muitos jovens, decididos a segui-lo no radicalismo evangélico que ele havia escolhido viver. Alguns deles tinham chegado a Coimbra, com o projecto de atravessar a fronteira da cristandade num sonho que encontraria a sua concretização no martírio pelo Senhor. Fernando encontrara-os no mosteiro de Santa Cruz, quando ainda estava seguro de si, embora com muitas tensões; ele os “reencontra” quando são trazidos de volta, mártires de Cristo. É o toque que o faz escolher.
Para cortar os laços com a família, com o mosteiro, com a sua história anterior, muda até de nome e lança-se numa história que gostaria que corresse de acordo com o seu novo projeto: tornar-se mártir de Cristo. Não já como Fernando de Lisboa, mas como Frei António.
Todavia, o seu projeto pessoal de martírio naufraga, não apenas na realidade natural de um mar agitado, mas também no fracasso de um sonho que perseguia. E agora?
Em 1221, encontra-se em Assis. Cerca de cinco mil frades estão reunidos em torno de Frei Francisco, um fundador surpreendido, incapaz de aguentar a mudança do seu sonho inicial vivido com os primeiros doze companheiros. Também ele deve reconfigurar o seu projeto pessoal com o projeto de Deus.
Paixão pelo Evangelho. Quando é enviado para o ermitério de Montepaolo, na Romanha, frei António é um desconhecido. Precisa juntar os estilhaços do seu sonho, confrontando-os com a realidade. É só no “silêncio” que se pode ouvir a voz de Deus que se revela no concreto da história.
A história torna-se presente quando, em Forlì, Frei António se dá a conhecer pelos dons recebidos e um surpreendente conhecimento da Sagrada Escritura. A partir de então, aquele que foi “o amante do ermitério e do silêncio” (Vita prima), torna-se o homem da palavra, pregada, contemplada, anunciada com uma paixão incansável para converter os corações e para que uma vez convertidos construissem relações humanas e sociais longe da violência e dos abusos.
Inicia uma atividade incansável na formação dos frades, preparando-os para uma pregação baseada na bíblia, conforme o mandato recebido de Francisco, como pregador credível da boa nova e como guardião e ministro dos frades nas terras de França e do norte da Itália.
Não tinha ainda quarenta anos quando, tendo gasto todas as forças na pregação e no apostolado, o seu tempo terminou, a 13 de junho de 1231.
Uma memória bendita, reconhecida pela Igreja com a canonização nem um ano depois da sua morte (30 de maio de 1232); memória que ultrapassou o santuário que a cidade de Pádua lhe dedicou, tornando-se o santo, o protetor dos pequenos e dos pobres, o fiador das graças, que os próprios confrades quiseram levar consigo, reconhecendo a sua santidade, anunciando o evangelho de Cristo até os confins do mundo.

Frei Luciano Bertazzo.
Presidente do Instituto Teológico Santo António Doutor, Pádua, Presidente do Consórcio EFR-Editrici Francescane. Professor de História da Igreja na Faculdade de Teologia de Triveneto.
Autor de uma vasta bibliografia e artigos científicos sobre Santo António e o franciscanismo.
Foto da capa: António de Pádua, fresco de autor desconhecido do século XIV, Basílica de Santa Maria Miaor, Bérgamo, Itália. Foto de Mario Bonotto, 2016.
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