Digo, desde já, com a maior parte dos cinéfilos, que este é um filme extraordinário, um dos melhores de Clint Eastwood, talvez o ‘canto do cisne’ da sua magnífica filmografia, como ator e realizador.
Earl (Clint Eastwood) é um apaixonado cultivador de hemerocallis (hemerocálias), cujo nome, premonitório, é também ‘lírios-de-um-dia’: desabrocham de manhã e murcham à noite. Mas, por causa delas e de mais uma participação num concurso para escolher a mais bonita – ganho por ele –, Earl não foi ao casamento da filha, talvez a sua falta mais grave, somada a muitas outras, como lhe há-de ser recordado algumas vezes. Por exemplo, doze anos mais tarde, quando aparece para a festa de noivado da sua neta. Ela fica contente, a mãe e a avó não, vão-se embora. Ainda por cima percebem, por toda a tralha que ele carrega na sua velha pick-up, que ele tinha falido e não tinha para onde ir.
Assim tinha acontecido, de facto, por causa sobretudo da internet, como fará questão de dizer, com humor também, nalgumas circunstâncias. Mas este episódio vai ser decisivo para o desenrolar do filme, por causa do cartão que um dos amigos da sua neta lhe entrega como possibilidade de um trabalho bem pago.
Earl é um homem em fuga para a frente: a família não o quer, de tal modo está magoada e o cultivo das suas queridas flores também tinha chegado ao fim. Vai então apresentar-se para trabalhar, pois tem as condições ideais para fazer aquele serviço: transportar droga de cidade em cidade, numa rotina que lhe era familiar, que o mantinha sozinho na estrada sem ter de se confrontar com a família e lhe rendia tanto dinheiro que podia fazer bem aos outros. Earl era um homem bom e generoso, que sabia que algumas das suas opções não tinham sido as melhores – por isso, até ousa dar bons conselhos a outros, para que não lhes aconteça o mesmo que a ele. Mas ainda não tinha chegado o momento da sua redenção. Estava a caminho.
As coisas corriam bem. Um ou outro momento mais apertado foi resolvido de maneira hábil por ele, que até se dava ao luxo de alterar os planos estabelecidos pelos chefes do cartel da droga, para comer ‘a melhor sande de porco do mundo’.
Mas todas aquelas viagens não foram apenas entregas de encomendas de droga, foram um caminho para a redenção. Ele sabia que aquilo não ia durar sempre e que não podia continuar a fugir de si mesmo e dos seus. Na ‘última viagem’ recebe um telefonema da neta a dizer-lhe que a sua ex-mulher – de quem já tinha tentado reaproximar-se – está a morrer. Ele bem diz que tem um trabalho importante e não pode ir mas, correndo todos os riscos, aparece lá em casa para a ver e ficar ao seu lado, até ela partir, serenamente, junto daquele a quem sempre amara.
Depois, Earl volta ao caminho para fazer a entrega, acabando maltratado e preso. Mas agora é um homem novo, livre e reconciliado com a família e consigo.
Aquele momento redentor vai culminar numa das cenas mais intensas, quando em tribunal, contra os argumentos da sua advogada, com toda a dignidade e honra de um veterano de guerra se declara: ‘culpado’.
O que vem a seguir é profético: Earl, na prisão, a cultivar de novo os seus lírios-de-um-dia, plenamente liberto e com a certeza das visitas da família. Só o que é assumido pode ser redimido. Não, o filme não é sobre o tráfico de droga: é sobre a família e a redenção, uma vez mais. Magnífico Clint Eastwood, à beira dos noventa anos, intenso e expondo todas as suas fragilidades, no meio de muito humor. Como se fosse o seu testamento.

The Mule -Correio de Droga
Clint Eastwood
Drama, Crime, M/14, EUA, 2018
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