Num texto na revista Visão, de 18 de agosto de 2016, “O valor global da língua e da cultura”, Guilherme d’Oliveira Martins escreve sobre os desafios que a língua portuguesa enfrenta num mundo como o nosso, praticamente (ou será melhor dizer, aparentemente?) sem fronteiras para a informação e para o conhecimento.
O autor destaca o espaço transnacional da língua portuguesa e a sua identidade partilhada, e relaciona o futuro do português e dos países em que ele é língua oficial com uma melhor educação, melhor formação, melhor ciência.
Em contraste com a “economia da ilusão e do casino”, Oliveira Martins propõe uma “cultura criadora e inovadora”, capaz de criar valor, assinalando ainda que devemos “falar mais em desenvolvimento humano, ao lado de exigência, rigor e disciplina na aprendizagem, na educação e na formação.” É um desígnio que deveria ouvir-se com maior clareza nos discursos e ver-se com mais nitidez nas práticas.
Não há desenvolvimento humano, não há progresso social, não há uma sociedade mais justa e com menos desigualdades, não há povo criador, sem educação e sem cultura.
A cultura − e a língua, que é simultaneamente sua expressão e matéria − é charneira entre as várias dimensões das sociedades e entre diferentes comunidades nacionais ou políticas.
A primeira pessoa do plural usada pelo autor inclui as culturas de língua portuguesa na sua diferença. Permitam-me sublinhar este aspeto: a diferença. Celebremos a diferença e a pluralidade; dos indivíduos e dos seus caminhos, das histórias e dos seus protagonistas, dos sonhos e dos seus narradores.
Ser global exige ser singular
Se queremos ser globais, temos de insistir nas fronteiras. Parece um paradoxo, mas é-o apenas à superfície. Insistamos nas fronteiras: não nas que dividem e bloqueiam a passagem, mas naquelas que assinalam a riqueza da diferença, que alertam para o encontro com o outro, que celebram a vizinhança fecunda. Sim, ser global exige ser singular, porque é no contraste que nos reconhecemos inteiros, porque é lado a lado com quem não é o mesmo que vamos mais longe. No caso, não necessariamente uma viagem na geografia física, mas um itinerário comum de progresso pautado por “exigência, rigor e disciplina”, para usar as palavras de Guilherme d’Oliveira Martins.
A poesia e a arte salvam vidas e tornam a humanidade melhor
Neste texto, o autor coloca na mesma dimensão salvífica a criação artística e a criação científica: “Um poema, uma obra de Arte ou um novo medicamento salvam vidas e podem tornar a Humanidade melhor”. Surpreende-me sempre este argumento e menos pela sua originalidade do que pela sua bravura. É preciso coragem para o escrever, para o dizer, porventura para fazer dele litania do quotidiano perante o desconcerto do mundo.
De igual modo, são bravas as palavras de Eduardo Lourenço num conhecido ensaio intitulado A chama plural, justamente sobre a língua portuguesa e as culturas de língua portuguesa. Ao escrever sobre a vitalidade da língua, Lourenço atribui-a a académicos e linguistas, mas diz que…
ela é sobretudo, obra dos que a trabalham ou a sonham como exploradores de um continente desconhecido: romancistas, dramaturgos, poetas, sobretudo, que não apenas os que assim se chamam mas todos os que na quotidiana vida inventam sem cessar as expressões de que precisam para não se perder o tempo que passa, do mundo que se renova e transfigura.
Teremos nós a bravura para assumir a responsabilidade da criação, da invenção? Teremos nós a bravura de nos deixarmos envolver (que não levar) pelo movimento do tempo? Reconhecemos no outro o poeta que ele pode ver em nós?
Termino com versos. São estes, são todos os outros; porque na poesia − na língua − nos movemos e nos encontramos.

Um só poema basta para atingir a terra,
caminho de todos os poemas,
sinal de todas as graças,
poço de todas as águas,
tenham ou não tenham olhos que as chorem
[…]
E o poema infiltra-se de perto,
deixando à superfície
uma ligeira espuma poética representando o poeta
de olhos abertos para a espiral dos tempos.
Jorge de Sena, Espiral, 21/3/1942
No centenário do nascimento do poeta Jorge de Sena.
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