Não penso que haja palavras intraduzíveis. Os estudos de tradução e a experiência concreta dos tradutores provaram repetidas vezes o contrário. Traduzir é um movimento de procura, é um movimento de intercompreensão, e de paz. Tudo é possível de ser traduzido e traduzir é um itinerário de aproximação ao outro que passa necessariamente por uma procura de si mesmo: chegar ao outro, trazê-lo para junto de mim e, tocado por essa alteridade, entender-me renovado.
Como ação humana, a tradução é, todavia, um exercício imperfeito e por vezes, poucas, ela pode ser até desnecessária.
Não porque haja palavras intraduzíveis, mas porque elas viajaram inteiras, de uma língua a outra, de uma cultura a outra, e se instalam na nova pátria. Vêm-me à cabeça, por exemplo, Zeitgeist (o espírito dos tempos) ou Bildungsroman (romance de formação), para ir buscar exemplos das minhas áreas de estudos, a Literatura e a Cultura. Quando falo de palavras que viajam, penso sobretudo no espaço, mas é igualmente observável a viagem das palavras através do tempo, deslocando-se em sentidos geográficos e semânticos.
Não é sobre tradução que devo escrever estas linhas; em todo o caso, ao pensar em aggiornamento, estas brevíssimas ideias foram as que primeiro se organizaram.
É uma palavra, um conceito, que nasce no contexto muito particular do Concílio Vaticano II e que é menos uma ideia teórica do que um chamamento à prática: pôr-se em dia, atualizar-se, renovar-se. O papa João XXIII apresenta o termo como uma proposta de ver o mundo para a frente em diálogo perpétuo com o passado. O aggiornamento, porém, não é uma maneira de ser “inspirada” no passado, é uma revitalização exigida pelas condições do presente.
No verbete aggiornamento da Enciclopédia Católica Popular lê-se: (=“estar em dia”). Termo italiano que João XXIII popularizou como expressão do desejo de que a Igreja saísse atualizada do Vaticano II.
Releio-o agora e penso na feliz coincidência da utilização do verbo sair como verbo auxiliar de atualizar e tomo de novo consciência de como a linguagem é agente e testemunha dos tempos: sair, a palavra-ideia sobre que o Papa Francisco nos fez repensar a Igreja, a partir da Evangelii gaudium, e atualizar, palavra-ideia próxima de aggiornamento, do apelo de João XXIII.
O apelo conciliar ao aggiornamento foi e é ainda uma orientação para saber olhar o mundo moderno de uma maneira que congregue o respeito pelo passado e as necessidades do presente, e assim podermos sair para o mundo, conhecendo-o.
É certamente anacrónico relacionar aggiornamento com a viagem de Magalhães e Elcano, que celebrámos ao longo de 2019, porque a palavra-conceito tem data e local de nascimento que a condicionam. Já a ideia é multi-contextual e intemporal. Em certo sentido, sempre que o ser humano enfrentou grandes mudanças foi chamado a atualizar-se, a olhar para o seu dia, para o seu tempo (embora nem sempre o tenha sabido encarar) com as doses devidas de passado, de presente e de futuro, que exigiram dele, entre outras virtudes, a capacidade de diálogo, fidelidade aos princípios e coragem para (se) transformar.
Foto da capa: São João XXIII (1881-1963), o Papa do aggiornamento, convocou o Concílio Vaticano II, inaugurando um tempo de atualização e mudança na Igreja.