Há já muitos anos escrevia Joaquim Cerqueira Gonçalves ofm, ecologista sério de longa data, as seguintes palavras, republicadas na selecção de seus textos da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), em 2014:
Se a inextricável conexão com o ambiente indicava a insuficiência não necessariamente negativa, do ser humano, que não poderia subsistir dissociado do universo, nem por isso se deixava de considerar o ambiente em função da omnímoda e arrogante referência humana.
Não é do ambiente que se trata, mas do ambiente humano
Continua o nosso ecologista sábio afirmando que “na verdade, não é do ambiente que se trata, mas apenas do ambiente humano”. A grande ilusão, grande erro com consequências dramáticas sobre o ambiente geral da Terra e com consequências que se anunciam – já há muitas décadas – como trágicas para a humanidade, consiste em se pensar que o ser humano e o imenso aglomerado biológico humano não são parte integrante e indissociável do único grande ecossistema que se conhece e que é o terrestre.
Pensar-se e dizer-se constantemente algo como ‘nós e o ambiente’, ‘o ambiente e nós’ e outras expressões que seguem este modelo lógico dualista, é precisamente situar-se activamente no cerne lógico da acção de violência depredatória do ser humano sobre tudo o que transcende o mesquinho interesse humano, individual e colectivo.
Ao pensar-se segundo este esquema dualista, que é passado de geração em geração, está-se a criar um clima prático e pragmático de polémica, de guerra, entre os seres humanos e o restante das entidades que, com ele e não contra ele, constituem o mesmíssimo ato ecológico em que consiste o que, nas palavras de outro grande ecologista sério, da mesma geração de Cerqueira Gonçalves – a caminho dos cem anos de vida –, Sir David Attenborough, é “a vida na terra”.
Ora, tem sido este sentido perverso de que o ser humano atenua ou elimina as suas carências próprias não em colaboração, em literal trabalho conjunto, com o que o transcende em termos de presença ecossistémica, mas em polémica com essa mesma transcendência, que tem levado ao desarranjo em que se tem vivido nos últimos séculos.
E isto sobretudo depois do início da chamada primeira revolução industrial, que lançou o abundantíssimo carvão como energia motora de um novo modo de produção que prescindia de uma relação íntima entre o ser humano e os restantes elementos do ecossistema, passando a haver uma relação de violência em generalização, de que os massacres mecanicamente auxiliados das duas Grandes Guerras – grandes, enormes em humana estupidez de paroxismo mecanicista: os fornos de Auschwitz e Treblinka – são o triste ponto mais alto.
Hodiernamente, e, sobretudo desde a grande crise do petróleo do início da década de setenta, há não apenas uma maior consciência ecológica – que não o é, genuinamente –, mas uma grande angústia de tipo psicológico e superficial quanto às consequências nefastas que tem o abuso anti-ecológico que a acção humana pode exercer sobre, não propriamente a romântica e em si mesma ignorada ‘natureza’, mas sobre a própria humanidade. A questão continua, sob disfarce ecológico, a ser, ainda e cada vez mais, antropológica, antropocêntrica.
A generalidade dos seres humanos, pelo tipo de reacções que manifesta, continua a não se interessar pela agora invocada ‘natureza’, mas por si própria: se o mal que se faz quotidianamente à ‘natureza’, ao ‘ambiente’ não afectasse o ser humano, estaria este mesmo preocupado com o ‘ambiente’, com a ‘natureza’? Alguém acredita em tal?
A besta humana destrói apenas porque pode destruir e porque tal lhe dá o poder que os impotentes tomam como ato divininizador de si mesmos.

É do bem próprio e exclusivo do ser humano que este tem sempre cuidado, com prejuízo de todo o meio ambiente, mesmo, e, muitas vezes, sobretudo, quando se trata do outro ser humano, tão parte integrante de tal meio quanto o gato, o cão – produtos não naturais, mas culturais – e a águia ou o ginkgo ou o dodo, este último símbolo mártir da imensa imbecilidade humana, da besta humana que destrói apenas porque pode destruir e porque tal lhe dá o poder que os impotentes tomam como acto divinizador de si mesmos.
Não admira, assim, que sucessivas cimeiras sobre o ambiente sejam sucessivos produtos falhados, pois são atos em que os descendentes reais da linhagem que tem o massacre do dodo como símbolo se encontram não para modificar radicalmente a relação de predadores, relação de que necessitam para se manter no poder, mas para manter a mesma tradição institucional de garantes dos interesses antrópicos daqueles que representam.
Ora, quem eles representam somos todos nós, que nos manifestamos hipocritamente contra a malfeitoria anti-ambiente saudável, aos berros perante as máquinas das televisões ou ao telemóvel, tudo altamente civilizado e tudo com impactos tremendos em termos ecológicos para poder estar ao nosso serviço, ao serviço da nossa vaidade, da nossa arrogância, das nossas i-necessidades. São estas não-necessidades que originam, para sua satisfação, os males anti-ecológicos.

É mesmo necessário comer um bife de um kilograma?
É mesmo necessário ter um automóvel com mil quinhentos cavalos de cilindrada, a potência dos tanques de guerra mais potentes? Já agora, é mesmo necessário haver estes tanques? Estes são apenas exemplos paradigmáticos.
Se se pensa que tudo isto é necessário, então, o melhor é estar calado e não ser hipócrita.
O que é que se quer, mesmo, sem hipocrisia: o bem do planeta, que é, directa e indirectamente o nosso próprio bem, ou o bem da nossa arrogante antropomania auto-cêntrica?
Um governo universal do planeta, sem bestas hipócritas, não poderia pensar e pôr em ato uma forma de vida ecológica que, sem matar em forma de contra-revolução ecológica milhões por causa da necessária transição, permitisse viver bem, mas sem os exageros burgueses que estão na origem do mal ecológico, que é um mal do excesso de usura, não um mal de satisfação de necessidades?
Sem voltar ao tempo das cavernas, não será possível viver bem sem agredir o ecossistema?
Talvez sim, mas teria de se experimentar. Note-se que, neste caso, dificilmente se poderia ter o luxo psicológico de fracos que sobrevivem dos likes dos books sem grande face.
Mais acção, menos lixo, menos inchaço de exibição aburguesada e talvez se consigam os primeiros passos em tal caminho. Não são os Cops ou outros polícias quaisquer que vão salvar o mundo, és tu, sou eu. Caminhe-se.
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