Um dia, quando cresceres, vais perceber

É um filme que não se deixa ‘apanhar’ à primeira. Um filme tão encantador, tão generoso, tão verdadeiro, que com tanta simplicidade e humildade põe diante de nós o tanto que há de insondável nos laços que nos tecem e constroem, no meio de tanta fragilidade e tantos erros.

Aftersun,
de Charlotte Wells,
Drama, M/12, 2022, EUA, Reino Unido

Aftersun,
de Charlotte Wells,
Drama, M/12, 2022, EUA, Reino Unido

Hoje, escrevo sobre um filme ‘belo de certa maneira’, de quando ainda se telefonava numa cabine telefónica e as férias e divertimentos, apesar de tudo, eram mais vagarosos. Tão estranho aos ritmos de hoje. É um filme que vale a pena ver, mesmo se nos deixa ‘pendurados’ a pensar naquela porta que vai e vem…

Uns vinte anos depois, Sophie (encantadora Frankie Corio), já adulta e mãe, vai rever e recordar aquelas magníficas férias que passou com o seu pai, Calum (inesquecível Paul Mescal), algures na Turquia, quando tinha 11 anos e registava tudo na sua câmara de filmar. Carregadas de nostalgia, talvez agora aquelas filmagens consigam fazer sentido e ajudá-la a compreender aquele pai, tão próximo e tão misterioso, tão alegre e tão triste, que se despediu dela no aeroporto e que, provavelmente, ela não voltou a ver. Mas ficou a memória daquelas férias magníficas e ela vai voltar a esses dias, entrecortando as suas lembranças quase fantasmáticas com luzes e sombras numa discoteca, no presente.

É assim a memória, feita de muitas imagens difusas e trémulas, e de outras tantas bem definidas (é muito interessante esse jogo da fotografia entre a nitidez e a desfocagem).
O que temos diante de nós são dois seres em crescimento, à procura de si mesmos: uma filha, Sophie, em transição da infância para a adolescência, não sendo já criança, mas não conseguindo ainda entender e entrar nas conversas e descobertas dos adolescentes mais velhos do que ela; e um pai, Calum, separado, mas que ainda diz à ex-mulher que a ama, que muitas vezes parece perdido, sem saber que rumo seguir (como sugerem os enquadramentos que fragmentam o corpo do personagem, escondendo-o nas sombras, nos espelhos, nas telas de TV ou nos limites da área enquadrada pela câmara).

Por isso, o filme – e creio que vem daí o seu encanto – é muito mais do que uma crónica de umas férias em que um pai e uma filha se entenderam e divertiram muito. É uma exposição do mundo interior que habita cada pessoa e que é sempre um mistério para os outros, sobretudo quando se é uma criança. Nem Sophie nem nós ficámos a saber quais são esses ‘demónios’ interiores que habitam o pai (há um momento em que me lembrei de Virgínia Wolf a entrar no mar…). Talvez seja isso que ela procura agora, ‘atormentada’ por essas memórias: resolver os enigmas e encaixar as peças, “como se fosse um derradeiro encontro com o seu pai, que começamos a presumir desaparecido, entretanto”.

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