Oportunidade para a não violência

Somos todos testemunhas. O poder diabólico está aí: destruição, divisão, morte. Imagens de terror. Teremos regressado à 25ª hora, a hora improvável?

Na desgraça que se abre a nossos olhos emerge o poder simbólico da solidariedade, a compaixão erguida como padrão de humanidade.

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…

Sophia de Mello Breyner Andresen

Eis o tempo propício para ouvirmos os profetas da não-violência. Os homens e mulheres que ao longo da história nos vão dando razões para que a paz não seja a paz dos vencedores, mas a paz que nasce da consciência de que “todos somos irmãos”.

Recordo o poema de Ricardo Cantalapiedra após a sua incorporação militar em 68: “Mãe, dir-te-ão que me viram morrer, mas não te dirão que me viram matar…”.
~

Essa capacidade de resistir à violência com a não-violência é o grande desafio face ao equilíbrio do medo e do terror em que se continua a apostar como caminho para a paz: “Se queres a paz, prepara a guerra”. Urge mudar rapidamente a estratégia: “Se queres a paz, prepara paz”.

Na mensagem para o 50º Dia Mundial da Paz, de 2017, o Papa Francisco aponta, duma forma clara, a não violência ativa e criativa como o caminho dos construtores da paz:

Jesus viveu em tempos de violência. Ensinou que o verdadeiro campo de batalha, onde se defrontam a violência e a paz, é o coração humano: «Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos» (Marcos 7, 21). Mas, perante esta realidade, a resposta que oferece a mensagem de Cristo é radicalmente positiva: Ele pregou incansavelmente o amor incondicional de Deus, que acolhe e perdoa, e ensinou os seus discípulos a amar os inimigos (cf. Mateus 5, 44) e a oferecer a outra face (cf. Mateus 5, 39). Quando impediu, aqueles que acusavam a adúltera, de a lapidar (cf. João 8, 1-11) e na noite antes de morrer, quando disse a Pedro para repor a espada na bainha (cf. Mateus 26, 52), Jesus traçou o caminho da não-violência que Ele percorreu até ao fim, até à cruz, tendo assim estabelecido a paz e destruído a hostilidade (cf. Efésios 2, 14-16).

Face à visão armamentista, o Papa avança claramente pelos caminhos desafiadores da não violência ativa e criativa:

Quando a Madre Teresa recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1979, declarou claramente qual era a sua ideia de não-violência ativa: «Na nossa família, não temos necessidade de bombas e de armas, não precisamos de destruir para edificar a paz, mas apenas de estar juntos, de nos amarmos uns aos outros (…) e poderemos superar todo o mal que há no mundo».

O Papa apresenta, depois, o caminho da não violência como caminho percorrido por tantos que marcaram a história na sua resistência contra a violência:

A não-violência, praticada com decisão e coerência, produziu resultados impressionantes. Os sucessos alcançados por Mahatma Gandhi e Khan Abdul Ghaffar Khan, na libertação da Índia, e por Martin Luther King Jr contra a discriminação racial nunca serão esquecidos. As mulheres, em particular, são muitas vezes líderes de não-violência, como, por exemplo, Leymah Gbowee e milhares de mulheres liberianas, que organizaram encontros de oração e protesto não-violento (pray-ins), obtendo negociações de alto nível para a conclusão da segunda guerra civil na Libéria.

O desafio do Papa está na linha de encontro do Evangelho com a história, com a nossa história. Como estancaremos a espiral de violência a que estamos a assistir?

Dados de 2020 apontam para uma quantia exorbitante dos orçamentos militares: quase 2 000 000 000 000 de dólares.

Parece ser verdade que para haver paz não seriam necessárias essas exorbitâncias. O caminho da não-violência não é um caminho de ingenuidade. É um caminho de exigência que precisa de investigação e de investimento.


Ao rejeitar a espada não tenho senão a lâmina do amor para oferecer àquele que investiu contra mim. É ao oferecer-lhe esta lâmina que espero a sua aproximação. Não posso conceber um estado de hostilidade permanente entre um homem e outro… Olho por olho, acabaremos todos cegos.

Gandhi

E quando isso acontecer, quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e cada lugar, de cada estado e cada cidade, seremos capazes de fazer chegar mais rápido o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção espiritual negra: Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo-poderoso, somos livres, finalmente.

Luther King

Estou convencida de que a não-violência é o caminho mais efetivo para combater a tirania e encontrar uma saída para conflitos complexos. É sempre possível recorrer a ela. Mas isso exige fé, coragem e capacidade de autossacrifício. No fim, as mudanças são alcançadas com um custo menor, e seus efeitos são mais poderosos e mais efetivos. Aqueles que escolhem a violência para realizar mudanças nem sempre conseguem o que desejam.
Para mim, a não violência é o denominador comum de todas as minhas ações. Eu a adotei naquilo que digo, naquilo que faço e nas minhas estratégias. Nunca me desvio dela e não vejo outra alternativa.

Leymah Gbowee

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos o vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso Reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dual, 1972

Related Images:

Discover more from Santo António, de Coimbra para o mundo

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading