Uma mulher que fugiu e outra que sonha fugir

Nunca tinha ouvido falar nem tinha visto nenhum filme de Hong Sang Soo. Mas tenho sempre algum fascínio pelo cinema que vem dos lados do oriente. Fui ver e não fiquei desiludido. O único lamento foi o retorno da pandemia que não deixou ver os outros filmes do mesmo realizador que estavam anunciados. Mas vamos então a este filme, muito feminino, muito simples, mas só aparentemente: A Mulher Que Fugiu. É precisa uma grande atenção para desbobinar as várias camadas mais ou menos escondidas. E compreender a infinita e subtil melancolia que o percorre.

A protagonista aproveita a ausência do marido para visitar três amigas que vivem na grande cidade de Seoul. É portanto um filme em três andamentos com algumas rimas internas, segundo li uma marca de Hang Sang Soo. Isso e a sua capacidade de filmar e dar sentido às situações mais singelas e banais do quotidiano. O filme começa com um grande plano de galinhas presas num galinheiro. Depois ela chega e entra no apartamento de cada uma das amigas que visita. A primeira coisa que ela diz, nos três encontros, como se precisasse de se justificar, é que ‘é a primeira visita que faz desde que se casou há cinco anos. Ela e o marido nunca tinham passado um só dia afastados um do outro’. Deve haver aqui gato escondido com rabo de fora. Até porque, no primeiro dos encontros ficamos a saber de uma mulher que fugiu, de um dia para o outro, abandonando o marido e a filha, sem explicações.

Domangchin yeoja/The Woman Who Ran | A Mulher que fugiu, de Hong Sang-soo, Drama, M/12, Coreia do Sul, 2020.
Domangchin yeoja/The Woman Who Ran | A Mulher que fugiu, de Hong Sang-soo, Drama, M/12, Coreia do Sul, 2020.

Os encontros são do mais normal possível, à mesa ou no sofá, enquanto se descasca e parte uma maçã ou se bebe um copo de vinho. E as conversas andam à volta das memórias e das situações atuais em que cada uma se encontra. Importante é ver como essas conversas são interrompidas, das três vezes – ainda que de modos e por razões diferentes – por um ‘irritante elemento masculino’, que nunca entra, que está e fica fora, quase sempre visto de costas. Apenas representações da opressão masculina? São as mulheres que ficam dentro, mesmo que repetidamente estejam perto das janelas, abram mesmo as janelas e olhem o horizonte lá longe. Às vezes, aquelas mulheres parecem um pouco perdidas e com vontade de liberdade. E estão sozinhas.

Este jogo do dentro e do fora é muito simbólico no filme, como a própria câmara nos mostra, e como vamos compreender, finalmente, no último encontro e nas últimas imagens. Afinal, aquela mulher que, no início da viagem, parecia dizer com agrado que nunca antes tinha estado separada do marido, vai descobrir, através das conversas com as amigas e numa fechada sala de cinema, como era infeliz e como desejava a liberdade.

Depois de conversar com a última amiga, desta vez num escritório, ela vai ver o filme. O que vemos projetado na tela, unicamente, é o mar com as ondas vindo e indo. Desta vez, a câmara do realizador passa da tela às cadeiras onde apenas ela está sentada. Sai para apanhar ar por uma porta que dá para um pequeno pátio, sem saída, onde conversa com um antigo amor. Depois sai para a rua, pára um pouco, como quem hesita no que há-de fazer. E volta a entrar na sala de cinema e a sentar-se. Mas, agora, a câmara vai da protagonista sentada nas cadeiras para a tela. E o filme acaba com o mar, a vir e a ir, evocando a possibilidade de fuga e de navegar numa imensidão de caminhos possíveis.

O sonho da liberdade? Depois de toda aquela jornada, terá ela percebido que o que tinha feito não era mais do que uma inconsciente tentativa de fuga? Sim, aquelas visitas levaram-na a reavaliar a sua vida.

Domangchin yeoja/The Woman Who Ran | A Mulher que fugiu, de Hong Sang-soo, Drama, M/12, Coreia do Sul, 2020.

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